Resenha - Cuidar da casa comum - Afonso Murad

Resenha - Cuidar da Casa Comum – Afonso Murad

 

                                                                                                                                 Romulo Freire

Na encíclica Laudato Si, o Papa Francisco não se apresenta apenas como um defensor do ambiente, mas ele propõe uma visão integral da ecologia. A encíclica é dirigida não somente aos católicos, mas também a cristãos de outras Igrejas, crentes de outras religiões e todos os homens e mulheres que são chamados a cuidar de nosso planeta. O texto do papa pretende ser uma Boa Nova para a humanidade.

É necessário compreender as chaves de leitura, como o processo de ‘conversão da conversão’ em “conversão ecológica”, que trata-se de uma guinada proposta no que refere à conversão concebida no horizonte da fé cristã. O Papa Francisco propõe a conversão a Deus mediante uma autêntica conversão ao mundo entendido como a complexidade das criaturas que compõem nossa casa comum.

A Laudato Si se dá no contexto da Doutrina Social da Igreja, o seu compasso é dado pela tradição eclesial latino-americana, de Medellin a Aparecida e o ritmo próprio oferecido é a articulação do clamor da Terra com o clamor dos pobres.

Um dos pontos altos da encíclica é quando o papa, ao indagar acerca das raízes últimas dos fenômenos que afetam a integridade de nossa casa comum, denuncia a hegemonia do “paradigma tecnocrático”, que trata de salientar as ambiguidades da tecnociência e situá-la no amplo movimento da globalização excludente, criticando o atual modelo de desenvolvimento.

O modelo alternativo de desenvolvimento global, está na concepção do meio ambiente como um bem coletivo, a defesa do trabalho, a defesa dos povos indígenas e o papel dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil. Os dois últimos elementos preenchem o vazio político denunciado com veemência pelo Papa Francisco na encíclica.

Dentro de uma análise feita por dezoito cientistas sobre desenvolvimento humano num planeta em mutação, se elencam nove fronteiras que não podem ser violadas, caso contrário colocamos em risco as bases da vida no planeta: mudanças climáticas; extinção de espécies; diminuição da camada de ozônio; acidificação dos oceanos; erosão dos ciclos de fósforo e nitrogênio; abusos no uso da terra, como desmatamentos; escassez de água doce; concentração na atmosfera de partículas microscópicas que afetam o clima e os organismos vivos; introdução de novos elementos radioativos, nanomateriais e microplásticos.

A encíclica faz crítica ao mero ambientalismo, mesmo reconhecendo seu valor, pois ele é reducionista e antropocêntrico, colocando o ser humano no centro de tudo, e os demais seres só ganham valor enquanto servem ao uso humano, esquecendo o valor próprio de cada criatura. A natureza nos dá generosamente tudo o que precisamos para viver, porém, não retribuímos com cuidado, respeito e dando-lhe tempo para se autorregenerar. “Tratamo-la com violência, afirmando que nunca maltratamos e ferimos nossa casa comum como nos últimos dois séculos”.

Do pressuposto teórico deriva a nova cosmologia da física quântica, da nova biologia que implica a teoria da complexidade do caos (destrutivo e generativo). Um dos fundadores da física quântica dizia que: “Tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo é relação e nada existe fora da relação”. Tudo é relação ou tudo está em relação. Se tudo é relação, então a própria saúde humana depende da saúde da Terra e dos ecossistemas, em que todas as instâncias se entrelaçam para o bem ou para o mal, sendo uma realidade complexa e altamente relacionada com tudo.

A colaboração dos cristãos no enfrentamento dos problemas socioambientais, está profundamente vinculada ao modo como se entende na fé cristã o vínculo essencial entre, a relação com Deus e a relação com o conjunto da criação. Isso faz com que as questões sociais e ambientais sejam questões de fé e, consequentemente, faz com que o compromisso socioambiental dos cristãos seja um compromisso de fé.

Daí que a “crise ecológica” é um apelo a uma profunda conversão ecológica ao evangelho da criação, que se manifesta na vivência de uma autêntica “espiritualidade ecológica”, que não tem a ver apenas com doutrinas, mas antes, com uma mística que nos anima, com uma moção interior que impele, motiva e dá sentido à ação pessoal e comunitária. Na linha de Francisco de Assis é uma reconciliação universal com todas as criaturas, restabelecendo o estado de inocência original em que a existência humana aparece em relação harmoniosa com Deus, com o próximo e com a terra. Compete uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo.

Segundo o catecismo da Igreja, a confissão comporta outros quatro elementos, três anteriores e um posterior, num verdadeiro processo de conversão: exame de consciência, arrependimento de coração, propósito de emenda, prática de penitência. A conversão ecológica comporta o mesmo processo: uma tomada de consciência, um arrependimento a respeito do nosso destrutivo way of life (estilo de vida), um propósito de novo modo de vida, um exercício de vida nova.

Na dimensão comunitária, se exige o esforço comunitário de conversão, quanto a incidência social em todas as suas esferas: cultural, econômica e política. Somente assim poderá ter eficácia e não redundará numa consciência individual, impotente e angustiada. O papa cita o seu mestre, Romano Guardini: “Será necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições.

É necessária uma ecologia que recubra todos os campos: o ambiental, o econômico, o social, o cultural, o espiritual e também a vida cotidiana. Para o Papa Francisco é preciso uma ecologia que integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o circunda, porque isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida.

Na encíclica, Laudato Si, o Papa Francisco insiste com inúmeras referências à categoria pobre, indicando com elas que a deterioração do meio ambiente e da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta. Tanto a experiência comum da vida cotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres.

Dos efeitos às causas da crise ecológica moderna; percebe em suas raízes um problema civilizacional de paradigma: uma visão de mundo que fragmentava a realidade ao separar humanidade e natureza com o muro da tecnologia. Isso teve dois efeitos nocivos: desconectou as pessoas da natureza e as acostumou a modos de vida cada vez mais artificiais. Tratou o planeta como estoque de recursos a ser explorado e capitalizado, em função de uma economia que maximiza o lucro.

Cada pessoa deve ser vista com carinho e admiração, devido o valor de cada uma, todos nós seres criados, precisamos uns dos outros. Todos nós podemos ser incluídos a uma família, vai dizer o Papa Francisco, pois fomos criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde.

Ao dar à encíclica o título de um poema de louvor e ao dedicá-la ao cuidado com a casa comum, o papa situou logo a sua encíclica no campo da espiritualidade macroecumênica. A casa (oikos) comum é assunto ao mesmo tempo da ecologia e do ecumenismo. E o papa os une nesse cuidado amoroso da casa comum. A encíclica não trata apenas de considerações sobre um tema, nem de propostas sociais e políticas, mas de um cuidado espiritual. Nesse cuidado o papa afirma que a nossa casa comum é como uma irmã, com a qual compartilhamos a existência, e é como uma mãe que nos acolhe nos braços.

Foi o movimento ecumênico, o testemunho das Igrejas na oikoumene, da busca por diálogo e unidade visível do corpo do Deus-em-Cristo e da unidade na promoção da vida, que primeiramente atentou para esse clamor. E conclamou cristãos e cristãs a um esforço comum, em especial por meio das ações do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).

Nossa vida hoje é configurada a partir do paradigma tecnocrático, que é um paradigma homogêneo e unidimensional. Isso significa dizer que a compreensão do mundo em que estamos inseridos e da posição do homem de hoje diante da realidade é a técnica moderna: “A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como recurso principal para interpretar a existência”.

            Esta nova visão global se articulou enquanto “antropocentrismo moderno”, que colocou a razão técnica acima da realidade. É uma manifestação de que o ser humano passou a ocupar agora outro lugar no mundo: ele termina por se considerar o centro, a esfera que determina o sentido do mundo. Por esta razão não reconhece mais o valor intrínseco dos outros seres e reduz a natureza a puro espaço e matéria de sua ação no mundo. Por isso não é capaz de reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas.

No caso das técnicas de comunicação, elas chegam a modificar estruturas de consciência. Daí os fenômenos hoje conhecidos: a especialização e centralização na produção. Em virtude disso, torna-se muito difícil um olhar de conjunto: “A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas”.

A vida espiritual modifica o modo como o indivíduo olha as pessoas e a criação. Ao viver uma experiência eucarística de comunhão, não se pode mais considerar a natureza como algo separado de nós ou uma mera moldura de nossa vida. Todo o universo material é uma linguagem de amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós.

            A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo.

O louvor é a premissa para desenvolver o convite a uma ecologia integral, provocando em nós atitudes de desvelo e reverência, afeto e carinho. Por isso a primeira atitude que brota incontida do coração humano ao contemplar a criação só pode ser a do louvor jubiloso, porém este louvor tem que ser acompanhado por atitude de responsabilidade para com toda essa maravilha que sai das mãos do Criador.

Dois pilares para que esta espiritualidade tome lugar, o primeiro aponta para uma mudança de estilo de vida, denuncia a sociedade de consumo que empurra o indivíduo para acumular bens de que não necessita, o segundo trata de uma educação para uma aliança entre o ser humano e o meio ambiente, recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus.

            O Papa Francisco nos pede para mudar nossa ecopercepção, isso significa: superar aquela ideia de que o meio ambiente está fora de nós, vencer o preconceito de que ecologia é assunto de radicais verdes. É necessário compreender que tudo está interligado, que fazemos parte da Terra, que a ecologia é muito mais do que preservação da natureza. Inclui a consciência social, a busca de qualidade de vida na cidade, a espiritualidade integradora, a sensibilidade para a beleza, a gratuidade na existência, a renúncia ao consumismo, a adoção de um modelo de vida simples e alegre. Enfim, deter a espiral de destruição do planeta e acreditar que a humanidade pode ser diferente.

            Algumas práticas ambientais estimuladoras são válidas: como a reutilização de água de chuva, substituição por lâmpadas econômicas, redução drástica do uso de material descartável, reutilização de produtos, separação e destinação do lixo seco para cooperativa de coletores, incentivo à compostagem e horta/jardim de apartamento, oferecer mudas para replantio e cultivo de árvores frutíferas e do bioma local, centro para recolher e destinar à reciclagem o óleo de cozinha. Tais iniciativas devem ser realizadas de maneira consciente e pessoal, mas também em parceria com cooperativas, ONGs, empresas e poder público.

            Tudo que foi criado por Deus é expressão do amor de Deus, desse modo, todas as iniciativas de cuidado com a casa comum, se trata de um cuidado com a expressão do amor de Deus. Assim o cuidado e a responsabilidade fazem parte de cada pessoa, com o objetivo de preservar a casa comum, para que possamos sempre entoar um cântico de louvor na relação e na contemplação para com a criação e a adesão de vida ao seu Criador.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RITUAL DE BENÇÃOS - CONFORME TRADUÇÃO OFICIAL DO RITUAL ROMANO.

RESENHA LIVRO - "O SAGRADO" - RUDOLF OTTO

Comentário ao Hino Cristológico de Filipenses