O Humano Integrado

O Humano Integrado – Abordagens de Antropologia Teológica

Ainda hoje existe uma visão muito superficial sobre o diálogo entre teologia e ciência. Isso se deve ao fato de que, tanto o cientista, quanto o teólogo, julgam que o seu objeto de pesquisa e o seu método, são os únicos válidos para se chegar ao conhecimento da verdade. O primeiro passo para dissolver essa nuvem negra é entender que ciência e teologia tratam de objetos diferentes.

Enquanto a ciência se dedica ao estudo do mundo, e de tudo o que pode ser objeto dos sentidos humanos; a teologia se debruça sobre o estudo de Deus, que por si só, já é um objeto de estudo que ultrapassa a inteligência humana. A ciência contribui com a teologia, na medida em que oferece maiores explicações sobre o universo. E a teologia coopera com a ciência, na medida em que lhe proporciona sentidos e fundamentos; essa contribuição se dá de vários modos, mas, há um em especial que quero destacar, refiro-me as reflexões morais. Em outras palavras, quando a ciência não recebe bases sólidas da teologia para fundamentar os seus valores, o homem acaba virando um mero produto da ciência.

Os teólogos contemporâneos precisam estar abertos ao diálogo com as outras ciências e atentos as mudanças da cultura. Os autores que iremos abordar nesse livro estão cientes desse diálogo, e apresentam uma reflexão teológica visando todas as dimensões do ser humano e da sua vida cristã. Todos eles aceitam de maneira crítica, isto é, de maneira prudente, as contribuições das outras ciências para ampliar suas próprias reflexões teológicas.

Esse livro tem por objetivo enfrentar os reducionismos, que não olham para a integridade do ser humano. Ele não foi escrito por um único autor, pelo contrário, este livro possui vários autores e um organizador que reuniu textos de diferentes pessoas em um só lugar. Uma das preocupações do organizador é justamente o crescimento repentino de religiões que possuem uma visão de salvação cristã muito imediatista, individualista e egocêntrica.

Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja tem olhado com um carinho especial para o homem em sua totalidade. Isso significa o homem considerado como um composto de corpo e alma. No entanto, não é raro ouvirmos nas pregações atuais, um certo desprezo da carne em favor da alma. “Havia uma oração litúrgica na qual, uma vez, se pedia a Deus ‘desprezar as coisas terrenas e amar as coisas celestes’ (Terrena despicere et amare caelestia); agora, na mesma oração, pede-se a Deus ensinar-nos ‘a valorizar com sabedoria os bens da terra, sempre orientados aos bens eternos” (Raniero Cantalamessa). Porque se dermos um acento muito grande a questão da alma em detrimento do corpo, corremos o sério risco de cair no gnosticismo.

Segundo Alfonso Garcia Rubio hoje em dia se vive uma religião do neném, onde a pessoa pede e quer ser atendida imediatamente; igual as crianças que fazem birra até o pai concordar em dar o que elas querem. É esse tipo de religiosidade, segundo o autor, que sacraliza o egoísmo e o consumismo desenfreados da sociedade hodierna. E acaba causando boa parte dos problemas sociais que nós estamos enfrentando.

Para solucionar esse problema, a pastoral precisa olhar para o ser humano em sua totalidade. Os pastores precisam cultivar o eu, sem deixar que esse eu vire um individualista.

A fé cristã visa separar o homem de toda e qualquer idolatria. Mas para realizar isso é preciso antes saber quem é o homem? Ou seja, o horizonte da fé perpassa o horizonte da antropologia. Antes de saber quais são as dimensões que compõem o homem não é possível elaborar um plano de pastoral coerente e satisfatório.

É intrínseco ao ser humano o ato de relacionar-se com Deus, com o mundo e com os outros. Isso é algo inerente a vida do homem, mesmo que ele não queira terá que se relacionar com os outros homens ou não irá sobreviver.

Realmente livres? A ambiguidade dos ambientes urbanos

A antropologia é importante para a evangelização. No contexto moderno a antropologia foi essencial para enfrentar os problemas socioculturais. Foi o ambiente da inculturação que possibilitou a teologia voltar o seu olhar para o urbano. Contudo, para seguir em frente é preciso primeiro definir os conceitos de inculturação e de urbano.

1.       O que se entende por inculturação?

A inculturação consiste em evangelizar as nações respeitando o jeito próprio de cada cultura. No entanto, o encontro com o Evangelho deve ser um momento salvífico. Para isso, é necessário que o Evangelho mude os valores mais fundamentais da cultura. Então mesmo que a princípio o evangelizador não bata de frente com os costumes da região, em algum momento isso será inevitável.

A fim de fazer com que a Palavra de Deus produza frutos, os evangelizadores precisam estar dispostos a anunciar o evangelho de maneira que os destinatários entendam e se atraiam por ele. Pois sem uma evangelização eficaz não haverá conversão.

Dentro deste processo de adaptação temos o sincretismo. Isto é, uma vez estabelecida a comunicação entre evangelizador e cultura surge uma região intermediária. Seguindo esse método, termos empregados até então em um único sentido, passam a ser usados em outro sentido. Ou seja, o evangelizador ao adaptar o evangelho a vida do povo, utiliza palavras já conhecidas por eles para conferi-las um novo significado. Por exemplo, evangelion que significa “Boa Nova”, agora adquire um novo sentido, porque a Boa Nova agora representa o próprio Cristo, Ele é a Boa Nova dos cristãos.

E por fim vem o conteúdo, mas esse conteúdo não é simplesmente apresentar um conjunto de doutrinas. Antes é conformar indivíduos e/ou grupos na direção da pessoa e da proposta de Jesus. Num mundo onde reina a teologia da prosperidade (de igrejas midiáticas) ainda há espaço para Cristo crucificado e para o escândalo do Evangelho?

2. As cidades como preocupação evangelizadora

A Igreja Católica sempre esteve presente nas cidades; todavia, sua presença só se fez perceber na década de 1960 quando o processo de urbanização cresceu. No Brasil era o período pós II Guerra Mundial, o país entrava num processo de industrialização e urbanização. A Igreja Católica colocava em prática o que havia sido definido no Concílio Vaticano II. Entre as várias propostas estava a da Gaudium Et Spes n. 1, que é a seguinte: a Igreja deve assumir para si “as alegrias e as esperanças dos homens de hoje, sobretudo dos que sofrem”.

As cidades não foram o centro das discussões do Concílio Vaticano II; mas, posteriormente ocuparam lugar de destaque nas Conferências do Episcopado Latino-Americano. “Na Conferência de Medellín (1968), as cidades apareciam dentro do tema família”[1]. Segundo a mentalidade dos bispos da época, trabalhar com as famílias acarretava necessariamente em trabalhar com as cidades.

Em Puebla (1979) o tema da cidade ocupou um posto mais elevado. Os bispos perceberam a pobreza dentre outros fatores nas grandes cidades. Por isso Puebla faz uma escolha preferencial pelos pobres.

No entanto, um questionamento precisava ser feito: a estrutura das paróquias que tanto funcionavam nos campos iria funcionar igualmente nas cidades? Com todas essas questões surgindo, as cidades ganhavam cada vez mais seu status próprio nas discussões teológico-pastorais.

Em Santo Domingo (1992) a problemática da urbanização adquiriu identidade própria, como desafio à evangelização. Os bispos entenderam que para dar uma resposta ao mundo era preciso reconhecer a realidade das cidades com suas características próprias; isto é, consumista, midiática e egocêntrica e como consequência desses fatores crescia o índice de pobreza e exclusão social.

3.       O que se entende por urbano

Antes de continuarmos a nossa discussão é necessário fazer primeiro a constatação de que existem muitos termos que são próximos, entretanto, não podem ser confundidos. Com isso quero dizer que cidade e urbanização não são as mesmas coisas. A cidade deve ser entendida como uma área geográfica que já passou ou passa pelo processo de urbanização. Já urbanização deve ser compreendida como o “crescimento físico-estrutural das cidades, o desenvolvimento em vários sentidos, o surgimento de uma estrutura em forma de rede, articulando o sistema produtivo, a distribuição e o consumo, e, por fim, transformações ou mudanças sociais e econômicas ao se incorporarem as descobertas tecnológicas e cientificas aos setores da produção industrial, serviços e comercial”[2].

Outra questão é saber que não estamos lidando com algo fixo, mas evolutivo. Sendo assim temos três etapas: o pré-urbano, o urbano-industrial e o urbano-pós-industrial.

Os ambientes pré-urbanos:

São ambientes pequenos onde a família e o trabalho se misturam. Uma das características desses ambientes é que são multifuncionais, isto é, o local consegue se manter por si mesmo. Em outras palavras, a produção local é capaz de suprir as necessidades dos seus habitantes.

Os ambientes urbanos industriais:

São os espaços/cidades que deixam de ser multifuncionais e passam a ser uni-funcionais. Em outras palavras, as pessoas e/ou lugares se tornam especialistas em uma determinada área do conhecimento ou na produção de um determinado produto. As cidades não são mais capazes de suprir sozinhas o básico necessário para a sobrevivência de seus habitantes. É nesse ambiente urbanizado que nasce a indústria, cuja característica é justamente essa, a de se especializar em um determinado produto e ser a campeã de vendas desse mesmo produto. Agora iremos destacar alguns aspectos dessa realidade:

Primeiro a mobilidade se torna um fator importante. Os ambientes agora são diversificados, então é preciso circular do ambiente residencial para o ambiente de trabalho, do trabalho para a escola, da escola para o ambiente de lazer, etc. A característica do ambiente pré-urbano é que a família e a economia se misturam. Já aqui, no ambiente urbano industrial, os espaços da família e do trabalho não se confundem; da mesma forma não se confundem espaços públicos e privados. Antes existia um laço afetivo-funcional, agora está dividido; a pessoa tem laços afetivos com a família, e cria laços funcionais com os colegas de trabalho, escola ou faculdade. Neste ambiente o homem não consegue mais suprir seus sentimentos de segurança e afetividade; pois está sujeito a todo tipo de relação interpessoal, com indivíduos que conhece previamente ou não.

Os ambientes urbanos pós-industriais

“Considera-se pós-industrial o modo de organização econômica, social, política e cultural surgido nas últimas décadas do século XX e que espalhado mundialmente em virtude do progresso tecnológico, em especial, no que diz respeito à informática e aos meios de comunicação”[3].

O território não influencia mais a vida do homem contemporâneo; porque graças a tecnologia o homem pode se relacionar afetiva e funcionalmente com pessoas de outras regiões, ou até mesmo de outros países. Com isso o ser humano cria relacionamentos profissionais e até mesmo amorosos virtualmente.

Esse terceiro estado livra o homem de seus laços sociais. E a Igreja, mais especificamente, a pastoral, precisa urgentemente trabalhar essa questão da “liberdade” que o mundo urbanizado proporcionou ao homem. Porque nem sempre a vivência dessa liberdade está de acordo com o evangelho.

O problema

No contexto de urbanização a questão antropológica aparece como a questão da liberdade. Quanto mais uma região fica urbanizada, mais o homem sente-se sozinho para cuidar de si mesmo. Isto é, antes da urbanização o que importava era o grupo, a família, agora o que importa é o indivíduo.

O Critério de discernimento

O ser humano é chamado a viver em comunidade; ele se concretiza no ser com o outro e para o outro. A opção por Deus, e por meio dela, o processo de conversão é um passo que o homem dá livremente. Quando o homem é submetido a viver sobre as regras do grupo, a sua liberdade está suprimida e suas escolhas não são livres. No entanto, o homem também não pode ser individualista ao extremo, porque isso também poderia afasta-lo de Deus, pois não receberia os valores do grupo. Então, tanto no ambiente pré-urbano, quanto no ambiente pós-urbano, a pastoral deve cuidar do homem de maneira que esses fatores não interfiram no seu processo de conversão. Uma vez que a comunidade excessiva tira a liberdade e o individualismo excessivo tira os valores.

A superação do dualismo como desafio antropológico básico

Desde de Platão existe uma mentalidade de exclusão. Por exemplo, o mundo das ideias versus o mundo corpóreo; razão versus os sentidos; a alma versus o corpo; o pensar versus o sentir, etc. O problema aqui está em estabelecer oposição onde não há oposição. A solução antropológica está em trabalhar o homem em sua integridade e não em suas partes separadamente. Jesus sempre convidou cada um pessoalmente e de maneira intransferível. Mas esse convite sempre teve e tem ainda hoje exigências comunitárias.

Ação pastoral integradora

A ação pastoral precisa voltar o seu olhar para o homem dentro do contexto urbano. Pois o urbanismo traz consigo como consequência um individualismo muito grande. E as propostas religiosas que mais atraem são aquelas que incentivam o individualismo.

No contexto urbanizado é essencial que o homem perceba que a pratica do bem não é algo que derive simplesmente de uma teoria, ou de um ideal inalcançável. Mas, fazer o bem, muito mais do que um princípio ético é também algo excelente, porque beneficia os dois lados, tanto quem recebe quanto quem doa.

Por tudo isso podemos concluir que a pastoral católica nos ambientes urbanos precisa trabalhar o indivíduo, sem alimentar o individualismo. Isso se traduz concretamente da seguinte forma: pelo acolhimento individual, pela escuta e aconselhamento, pelo afeto mais do que pela burocracia, pelo espaço para o desabafo e orientações pessoais, pela valorização da oração pessoal. E depois trabalha o aspecto comunitário, mostrando a importância da individualidade para a comunidade[4].

Portanto, quando o ambiente faz o homem ser individualista a Igreja precisa ajudá-lo a viver em comunidade; por outro lado, se ele vive tanto em comunidade que se esquece do seu “eu”, a Igreja deve fazê-lo voltar o olhar para dentro de si. Aqui neste ponto podemos tratar duas realidades: a dos individualistas que vivem longe da Igreja e fechados em si mesmos, que precisam de uma pastoral que os convide e os ajudem a se incorporarem na instituição Igreja. E a realidade daqueles que não saem das nossas comunidades, entretanto, os pastores devem cuidar dessas pessoas, porque muitas vezes elas podem estar fugindo de problemas em casa. Isto é, os dois extremos são perigosos e os pastores devem estar vigilantes.



[1] Rubio, Alfonso Garcia. O Humano Integrado Abordagens de antropologia teológica. Editora Vozes, 2007 p. 28.

[2] Ibid. p. 30 – 31.

[3] Ibid. p. 33.

[4] Cf. Ibid. p. 46.

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