Reflexão sobre o livro de Isaías - as distintas humilhações

Isaías 50,4-7

4. O Senhor Iahweh me deu língua de discípulo para que soubesse trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim, desperta o meu ouvido para que eu ouça como os discípulos.

5. O Senhor Iahweh abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei.

6. Ofereci o dorso aos que me feriam e as fazes aos que me arrancam os fios da barba; não ocultei o rosto às injúrias e aos escarros.

7. O Senhor Iahweh virá em meu socorro, eis por que não me sinto humilhado, eis por que fiz do meu rosto uma pederneira e tenho a certeza de que não ficarei confundido.

 

Neste breve artigo, será desenvolvido o texto do livro de Isaías apresentado acima, com a finalidade de observar a questão da humilhação, estendendo, com a intenção de melhor exemplificar, à figura de Maria. Para tal finalidade, será antes brevemente tratado sobre a divisão do texto do profeta, pois é relevante o contexto de onde sai este texto, levando em consideração a distinção em falar de um texto de Isaías e do Dêutero-Isaías.

Segundo a Introdução aos Profetas presente na Bíblia de Jerusalém, os textos de Isaías 40 a 55 são atribuídos a um Dêutero – Isaías, pois segue o seu texto profético, mas é de uma época após o profeta. O texto faz referência a Ciro II, o Imperador Persa, que venceu contra o Império Babilônio libertando o povo do exílio, o que começa a ser datado por volta do ano de 550 a.C., como o período da primeira vitória de Ciro, e em 538/9 acontece a vitória definitiva, tendo assim, o fim do exílio. Ora, o Profeta Isaías nasceu por volta do ano 765 a.C. e no ano de 705 a.C. se tem as últimas evidências a respeito dele. Sendo assim, há uma impossibilidade histórica do texto de 40 a 55 ser de autoria do mesmo profeta.

O contexto, portanto, que se apresenta o texto do Dêutero – Isaías, corresponde ao fim do exílio; o momento que se aflora a esperança do povo que a antes parecia ter morrido. Um povo que estava longe de sua terra não podia mais expressar sua cultura. Um sentimento semelhante ao que viveu muitos povos durante os tempos de guerra, principalmente os Judeus nos campos de concentração. Aquele anúncio prévio de que está chegando ao fim da guerra, que o término do exílio se aproxima, vem para tornar a lembrança da terra de Sião em uma forte esperança, eliminado aquela antiga solidão do exílio. Sentimento esse que se é possível observar no Salmo 138:

1. À beira dos canais da Babilônia nos sentamos, e choramos com saudade de Sião;

2. nos salgueiros que ali estavam penduramos nossas harpas.

3. Lá os que nos exilavam pediam canções, nossos raptores queriam alegria: “Cantai-nos hoje um canto de Sião!”

4. Como poderíamos cantar um canto de Iahweh numa terra estrangeira?

5. Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que me seque a mão direita.

Pois bem, nestes capítulos de Isaías, se apresenta o cântico do Servo Sofredor, ao qual irei analisar o terceiro cântico, no trecho destacado no início do trabalho. Ora, o Servo sofredor parece ser aquele que marca um sofrimento em favor de uma libertação para o Israel que foi exilado por conta de suas transgressões: “A qual dos meus credores vos vendi? Antes pelas vossas transgressões fostes vendidos, pelas vossas maldades vossa mãe foi repudiada.” Sl 50,1. E nas palavras do servo, aparece pontos importantes, os quais desejo relacionar com a figura de Maria, a mãe de Jesus, para melhor conseguir aplicar tais realidade à pessoa de Jesus, visto que o sofrimento dela está mais próximo do nosso humano, enquanto a realização do sacrifício de Cristo está num plano, ainda que humano, de dignidade mais elevada, pois foi ele aquele Servo que mais se entregou à Vontade do Pai.

Ora, o primeiro versículo colocado fala da palavra que o servo recebe de manhã em manhã, palavra esse a qual ele se abre e traz consigo a certeza de que ela irá confortar os cansados. Mas, para evidenciar a veracidade de ser uma profecia, ou seja, palavra de Deus, o profeta diz: “O Senhor Iahweh me deu língua de discípulo” Aquilo que é transmitido, que traz a esperança ao povo exilado, vem de Deus; o Senhor que concedeu colocou no profeta as palavras de conforto. Tal como acontece no Novo Testamento, Jesus inúmeras vezes manifesta que veio para trazer a salvação, porém que estava cumprindo a Vontade do Pai.

Adiante, o profeta fala de um sofrimento. Aquele que luta para trazer o consolo é que se entrega para sofrer. Esses mesmos sofrimentos narrados, são os que aparecem em relação a Jesus Cristo, por exemplo em Mateus 26, 67. Mas o ponto em que quero destacar é como por um lado temos uma pessoa sendo entregue para sofrer por amor à Vontade de Deus, numa condição humilhante, por outro temos o profeta dizendo que não se sente humilhado. Aqui há duas concepções a respeito da humilhação, fundamentais, a meu ver, para o aprofundamento no mistério da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A primeira humilhação é a que ele narra, referente ao sofrimento que será alvo. Se fala neste ponto, da humilhação que se sofre por parte dos homens, por conta de se curvar para um Deus único, que a todo tempo quer conduzir seu povo para longe do pecado, ou melhor, de qualquer tipo de opressão que possa sofrer. A essa humilhação está sujeita toda pessoa que escolha seguir tal caminho. E falando como cristão, é uma realidade muito presente. A própria Igreja nos ensina sobre o mundo como um dos inimigos da alma, e se colocar no caminho da santificação, da “separação”, é optar por ser atacado pelo mundo das diversas mais diversas formas humilhantes que se é possível imaginar.

E é neste ponto que desejo me referir à figura de Maria Santíssima, dado o ensinamento da devoção mariana de que tudo aquilo que Jesus sofrer no corpo, Maria sofreu na alma. Ela está muito próxima do sofrimento de Jesus, devido ao caminho que ele resolveu seguir. E essa escolha marca, não apenas nela, a passagem da humilhação que é narrada em Isaías, e a humilhação a qual o profeta fala: “não me sinto humilhado”. A partir do momento que Maria se deixa conduzir pelo Amor de Deus, e com o seu Sim dá início a uma caminhada que ele traria por consequência “sete espadas transpassadas sobre seu coração”. É como ensina o escritor Federico Suárez, na sua obra “A Virgem Nossa Senhora”, que a cada momento que ela percebia mais sobre a sua missão, a cada momento que compreendia a dor que iria passar, estava sujeita a uma nova escolha; um novo sim precisava ser dado, e a cada comento novamente ela dizia Sim. Porém tal condição ela havia cantado já em seu Magnificat: a certeza de que Deus derruba os poderosos do trono e eleva os humildes a motivava a querer assumir a condição de escrava, se quem se submete à Vontade de Deus, e não teme ser humilhada, pois sabe da glorificação que  vem da parte de Deus.

Escutar o Magnificat de Maria é já ouvir o cântico do Servo Sofredor que será cantado por Jesus. Maria pré-anuncia para Isabel e para todos nós, que a realidade da humilhação não está longe dos que servem a Deus, porém ele olha para a humildade do servo e o glorifica, o elevado, pois assim ele havia prometido. Ora, a mesma convicção que sustentava os repetidos Sim que Maria dava, é que Jesus se apoio enquanto esteve no horto das Oliveiras, a pouco tempo de ser entregue para sofre e ser humilhado. Fazer a Vontade do Pai, era o seu foco, por isso tanto sofrimento passou naquele momento. A angústia em que se encontrava sua alma, se dividia em fugir daquela dor, mas querer fazer a Vontade de Deus. Mas ao rezar e devidamente abraçar a Vontade divina, Jesus segue para ser humilhado, mas somente pois sabia que o Senhor está com ele. A mesma certeza que movimentou Maria, também a mesma presente no livro de Isaías. A razão dele dizer “não me sinto humilhado” está em algumas palavras anteriores: “O Senhor Iahweh que me socorrerá”. Aí está a certeza do profeta que marca a distinção entre a duas humilhações. A humilhação que ele passa, a que Maria passa e a que Jesus passa, e a mesma que irá passar todo aquele que optar em fazer a Vontade de Deus: a humilhação por parte dos homens. Mas pior que essa é a humilhação que Deus fará sofrer aquele que for infiel à sua voz e que caminhar segundo os próprios desígnios. Essa humilhação nenhum dos três personagens sofreram, muito menos sofreremos nós se seguirmos e mesmo caminho.

Portanto, a reflexão desta perícope do Dêutoro – Isaías, convida a todo cristão a, caso não esteja disposta a abraçar, ao mesmo compreender a condição daquele que se faz Servo do Senhor. Realmente o sofrimento, a humilhação, é uma condição de todo aquele que caminha contra o pensamento de toda uma massa de pessoas. O perigo de anunciar a Verdade é se deparar com diversas pessoas que, por caminharem longe ou ao menos pouco distante da verdade, se incomodem com as palavras anunciadas. E aqui entra em todas as áreas. Não vejo como correto, por exemplo, inúmeros teólogos que façam uma crítica totalmente opositiva às práticas religiosas, por conta da realidade que viveu Jesus. O que ele fez não foi se encarnar para criticar a religião, mas para anunciar a Verdade, e como muitos religiosos sustentavam suas práticas no erro, e a manifestação disso, lhes colocaram diante de uma situação de incômodo, era preciso ou aceitar a verdade ou matar o anunciador para não continuar sendo prejudicado. Isso se estende para política, vida familiar, vida comunitária, até mesmo diante dos trabalhos de ações sociais: nada podemos fazer de Bem se caminhamos fora da Verdade, independente da área e ambiente. A questão está justamente ligada a opção pela Vontade de Deus. Se alguém “se sente humilhada” quando lhe é anunciada a Palavra de Deus, é porque resolveu escolher não sofrer a humilhação humana. Mas o servo, que faz a escolha correta, terá que colocar sua confiança naquele que exalta os humilhados, assim, terá a certeza que “não ficará confundido”.

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