Resenha - Viver em Deus sem Deus? - Roger Lenaers

Resenha – Viver em Deus sem Deus? – Roger Lenaers

 

                                                                                                                                 Romulo Freire

O ponto de partida é o fato de que o homem moderno e, portanto, também o cristão moderno enxerga a realidade com olhos completamente diferentes do que o ser humano de épocas passadas. O primeiro fator é a necessidade humana de explicação, tomar consciência de sua pouca capacidade e vulnerabilidade; o segundo fator é a intuição inata em nós, de uma realidade transcendente que a tudo abarca, enquanto ela própria não se deixa abarcar.

O Renascimento foi “pai” de duas conquistas tipicamente ocidentais: das ciências modernas e do humanismo, em que as ciências restringiam cada vez mais a área do anteriormente inexplicável, até que quase não sobrasse mais nada disso.

O primeiro fator da cosmovisão moderna ou da Modernidade, é o reconhecimento despertado pelas ciências, a autonomia do universo fizera com que quase não se precisasse mais daquele outro mundo, ainda que existisse. O segundo fator, o Humanismo, fazia parecer muito mais valioso e fascinante ocupar-se com o ser humano do que com o céu tornado obsoleto. O ser humano era um ser fascinante, portador de direitos, chamado à liberdade, igualdade e na medida de suas possibilidades à fraternidade, ou seja, não mais aquele ser carregado de culpa que a Idade Média havia visto nele. Desse autorretrato negativo o libertava agora a visão humanista, que conquistaria, partindo do Iluminismo e conquistando o Ocidente.

O modo como enxergamos as coisas, nos condiciona a ver como agimos em vista de uma nova ética, com o ser humano chamado a amadurecer e tornando-se adulto. Nesse sentido a ética antiga dos preceitos e leis que eram “dados” ou advindos de um Deus superior, cuja legitimidade passava pelas instituições religiosas tradicionais, encontra sem apoio na realidade concreta experiencial do ser humano.

A nova ética que chama o homem a humanizar-se, tem como objetivo o seu bem-estar, apoiado ao Iluminismo, colocou em segundo plano as “orientações” ou proibições da Igreja que eram pautadas em vista de “outro mundo” e não deste. Um processo doloroso de amadurecimento humano, pois o ser humano orientado a viver através da Igreja e do papa; derrepente o homem se vê “sozinho”, chamado a buscar sua humanização saindo de sua menoridade, tendo uma autonomia de si.

         A deficiência de qualquer ética de lei, encontra brechas pela qual se pode transgredir sem que seja descumprido da lei, porém, não cumprindo fielmente o que diz a lei, biblicamente os autores favorecem inconscientemente, uma mistura da mensagem divina com a avidez humana, enfraquecendo no cristão o senso de justiça.

     A natureza histórica e contextual das leis não pode ser uma lei fixa, pronta, amarrada, engessada, pelo fato de que a lei tem o objetivo de assegurar ordem numa determinada época e cultura. Ao dinamismo da sociedade e da cultura, torna-se necessário novas leis ou suas alterações, porém com a Lei Divina as leis são imutáveis, pela própria natureza divina, caso contrário Deus concordaria que Ele é falho, não tem o controle de tudo. O Cânon da Bíblia está fechado, então nem poderia explicitar melhor suas leis. A própria Revelação deu conta disso. No entanto leis eclesiásticas não são imutáveis e podem ser modificadas pelo substituto de Pedro e o Magistério da Igreja, mas deve seguir alguns preceitos das Leis Divinas.

        Como porta-voz de Deus, os homens celibatários emitiam abordagens éticas influenciando gerações que não indagavam por estarem presas ao tabu gerando consequências e o descrédito da própria Igreja. Em contraposto desta concepção, surgiu a revolução sexual do século XX, com posicionamentos radicais que não contribuíram para a humanização, a moral de então cede lugar a libertação sexual. 

A dimensão do prazer sexual é uma pulsão com força atrativa intensa que consegue sufocar a razão, por este motivo surge efeitos catastróficos, como a indústria do sexo e crimes contra a humanidade, baseados na satisfação, ocorre a instrumentalização do outro como algo meramente descartável.

A fé moderna ainda toca na questão do celibato que não pode ser tomado como que uma vida sem plenitude, seria sobremaneira agradável ao divino. Hoje é posto que existe perda, mas que os ganhos devem ser maiores. De forma contemplativa, o celibato deve ser posto como liberdade interior e plenificação do homem.

Um novo casamento é visto como algo benéfico em que o casal busca de forma legal proteger o desejo de unificação existencial. Este deve levar em conta o mandato divino da humanização e não aquele que o coloca como pecador público. A indissolubilidade não é uma característica do casamento. O que deve ser um casamento autêntico é a decisão e a tentativa de ser uma só carne.

O equilíbrio deve existir entre obediência e liberdade, pois não favorecem o Reino de Deus quando não são vividas de uma forma evangélica. A obediência que não é sadia gera escravidão e a liberdade exacerbada se torna ameaça à vida.

A obediência observada na Igreja por muitos cristãos, se originou muitas vezes pelo fruto do medo causado pelas ameaças de castigo do magistério e não da liberdade interior. As pessoas obedecem às leis da Igreja não porque elas são convencidas, mas porque elas têm medo do suposto castigo de Deus, desse modo, elas vivem a fé não por convicção e adesão à pessoa de Cristo, mas por medo de serem castigadas. É observado uma espécie de uniformidade comportamental na vivência dos cristãos e não a unidade, pois a unidade supõe o amor e a convicção.

É preciso viver nossa obediência e liberdade a partir da obediência e da liberdade de Jesus, pois é Ele quem nos liberta de todo tipo de escravidão, nos torna livres no seu amor, evitando uma obediência cega que diviniza o ser humano e evitando uma liberdade sem limites que levam à negação da presença do próximo e à libertinagem.

O humanismo moderno professa a autonomia do cosmo e do homem e seus direitos inalienáveis, como o direito à vida e à integridade física, quanto no olhar crítico da tradição dos crentes que tem como fundamento cristão o 5° mandamento: “não matarás”. Os cristãos se tornam adversários da eutanásia, de que se deve deixar a natureza seguir o seu curso e que também em casos assim não se poderia intervir no processo natural do morrer, nem mesmo quando o paciente terminal por isso implorar.

Na medicina paliativa busca-se uma ação boa com o moribundo, em fazer com que o mesmo tenha cuidados dignos e possibilite um fim de vida virtuoso, ou seja, “acrescentar vida aos dias” daquele que está pedindo para morrer. Por outro lado temos uma fé moderna com mais ênfase do que o humanismo moderno no valor de um atendimento paliativo o qual ofereça condições, através dos meios da medicina hodierna, de tornar o caminho para a morte o mais digno possível. “Humanamente digno” é morrer com o mínimo possível de dor e o máximo de consciência.

O conflito entre Fé, religião e ciência ainda existem apesar de não se oporem, mas complementarem-se de maneira harmoniosa. Galileu declarou explicitamente que a fé e a ciência, como duas fontes de verdade, não se podem opor uma à outra, é necessária uma harmonia apropriada entre as duas e que cada uma permaneça no seu respectivo campo. O conflito começa quando uma ou outra, estende o seu campo de ação, projetando-se no campo específico ou na matéria do outro.

      Quanto ao período pré-moderno, o modelo de Deus é de um soberano humano, infinitamente poderoso, com uma corte celestial, atribuindo-lhe falhas, deficiências humanas como parcialidade, arbitrariedade, melindres e severidade desproporcional. Isso pode distorcer a visão da realidade amorosa de Deus, refletindo na concepção de Deus e na maneira de orar e na liturgia, daí a necessidade de vestes, rituais litúrgicos, súplicas, pedidos de perdão e intercessões diante de tal soberano. Essa tradição desenvolvida e cultivada no passado, dificulta atrair o fiel moderno. Diante disso, o autor constata que a entrega, em deixar-se guiar pelo Amor infinito e criativo estando preenchido de Deus mesmo assim é o que ainda pode ser significativo para a modernidade. É romper a separação entre nós e Deus e “tornar-nos um com o amor primordial”, o que nos leva ao agradecimento e ao louvor outras formas de oração.

Os questionamentos se dão por exemplo, se a Sagrada Escritura é palavra inspirada por Deus, então só os originais em grego e hebraico são inspirados? O Concílio de Trento responde que o conteúdo é inspirado e não cada palavra no singular. Quando a ciência e o Iluminismo avançaram o Concílio Vaticano II admitiu que a Bíblia poderia conter erros, mas apenas em matéria irrelevante, os modernos viram nisso uma contradição: mas, a Palavra de Deus não é infalível?

Os profetas bíblicos dotados de uma força em suas mensagens, possuem sabedoria profunda de riqueza ética, seguida de Verdade, do Belo e do Bom, chamada “Transcendentalia”, como uma intuição inefável designada por “Deus”.

As homilias e interpretações remontam ao Novo Testamento, sendo a base de nosso encontro pessoal com Jesus como autorrevelação de Deus.

O encontro com Jesus significa “tornar-se-um”, unindo-se ao milagre que implica uma mudança interior. Alguma coisa da fala criadora de Deus está presente nas palavras de quem anuncia e o contato com essa fala opera no ser humano uma mudança para o bem, mas não se deve conceber tal contato com o acompanhar passivo e incompreensivo da leitura pública das Escrituras.

O Antigo Testamento pode ser considerado uma “fala” de Deus?

O Novo Testamento nos constitui como o lugar do nosso encontro com Deus. O Antigo aparece como a sedimentação da experiência com Deus de numerosos sábios, profetas e místicos em Israel. O encontro com Jesus significa uma experiência de Deus essencialmente mais rica do que a vivência mística que se comunica a partir do Antigo Testamento. A Torá foi de onde se nutriu a visão e a mensagem de Jesus, da qual tomou parte através de sua familiaridade com as Escrituras. Foi iniciado nelas pela educação que recebeu, assumiu-as e deixou-se guiar por sua inspiração e a partir dessa ótica, a Torá continua sendo importante também para nós.

A Bíblia só poderá ser vista como fala de Deus, na medida em que nos inspira e ilumina, nos liberta e encoraja, nos torne criativos e mais amantes: o falar divino criador e renovador. Textos bíblicos, não são em si, mas tornam-se “fala divina” na medida em que se dirigem a nós e nos interpelam em profundidade. É o falar de um Tu a outro tu. A certeza de que é Deus que se comunica conosco por meio daquelas palavras humanas, em direção ao bem que é despertado e humanizado em nós.

O Concílio Vaticano II nos documentos pontifícios afirma: a Eucaristia é Ápice e Fonte da vida cristã. Ao pensar na afirmação conciliar, diz que se de fato o preceito dominical fosse cumprido e a Eucaristia partilhada como “fonte” o número dos fieis não teria diminuído e a vida comunitária seria outra.

O sentido original da missa cristã, se dá pela expressão memorial da última ceia de Jesus, recordando algo importante que preenche com profundidade o crente, vivenciar novamente um acontecimento comovente que concede o acesso ao Transcendente. No gesto de partir o pão e tomar o vinho o cristão capta e vivencia a simbólica e real autodoação de Jesus, dando-se um encontro que o toca e o fortalece.

A partir do iluminismo torna-se impraticável a crença em um Deus-nas-alturas, extra-cósmico, invisível, indemonstrável. Com a reivindicação sempre maior da autonomia humana, Deus é cada vez mais estranho ao homem moderno, fator que levou à negação da existência de Deus nos moldes que era pensado.

É inegável a carga de humanismo e caridade que o cristianismo introduziu na civilização ocidental, o serviço gratuito oferecido aos doentes e pobres, com isso o humanismo não desmoronou, mas mudou de figura. A consciência de uma realidade sagrada se descolou para o homem. A partir de agora seus direitos serão afirmados e custodiados com uma ênfase cada vez maior.

Como entendeu Bonhoeffer, o mundo moderno é mais ateu e justamente por isso, talvez, está mais próximo de Deus que o mundo em sua menoridade. Entenda-se por ateísmo a negação da representação extra-cósmica e heterônoma de Deus, típica da fé pré-moderna. Deus agora é pensado como Amor primordial que se autoexpressa, o ser humano é o ápice da autoexpressão do inabarcável. Ele se manifesta em nós como ímpeto de humanização, rumo à liberdade e à independência.

 


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