Vaticano II A luta pelo sentido

Vaticano II A luta pelo sentido

Massimo Faggioli oferece em seu livro: Vaticano II A luta pelo sentido um resumo do Concílio Ecumênico Vaticano II e de sua recepção nos mais variados setores como a cultura, a política e o próprio setor religioso. Retrata o debate que houve dentro do próprio concílio, sobre o seu significado e o alcance pastoral e doutrinal de seus documentos. Ressalta ainda que, devido a interpretação muitas vezes ideológica do concílio, ele foi aceito ou rejeitado por muitos grupos. E não foi visto como aquilo que de fato ele é, isto é, o vigésimo primeiro concílio ecumênico da Igreja.

O Concílio Vaticano II, segundo Faggioli, abriu as portas da Igreja para o diálogo com as outras denominações cristãs, com os judeus e com os não-cristãos. E, ao mesmo tempo, o autor do livro tentou situar também, o debate histórico entre agostinianos e tomistas durante o concilio e no período do pós-concílio. O Vaticano II foi um concílio de Aggiornamento[1], isto é, a chave para entender o Concílio Vaticano II é a “atualização”; buscou-se modernizar a linguagem da Igreja, para que a doutrina perene da mesma fosse apresentada ao mundo moderno, num vocabulário acessível a todos.

Vale a pena citar alguns pontos do discurso de Sua Santidade o Papa João XXIII na abertura solene do Concílio Ecumênico Vaticano II. “O gesto do mais recente e humilde sucessor de São Pedro que vos fala, de convocar esta soleníssima reunião, pretendeu afirmar, mais uma vez, a continuidade do magistério eclesiástico, para o apresentar, em forma excepcional, a todos os homens do nosso tempo, tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades deste nosso tempo”[2]. É natural que durante este concílio se ouçam as vozes dos antigos pontífices, que desde os primórdios da Igreja deram o testemunho da graça de Deus em suas vidas. O Papa destacou que: “o que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz. Essa doutrina abarca o homem inteiro, composto de alma e corpo, e a nós, peregrinos nesta terra, manda-nos tender para a pátria celeste”[3]. A doutrina fundamental da Igreja está enraizada em Cristo e nos apóstolos; e depois foi sistematizada pelos Padres da Igreja. Isto é o que chamamos de Sagrada Escritura e Sagrada Tradição. Por isso o Papa João XXIII nos lembra que, “uma coisa é a substância do ‘depositum fidei’, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance”[4].

Ao estudar a história dos 21 concílios da Igreja Católica, percebemos que todos eles tiveram de passar por um período longo de recepção. Além disso, “o impacto verdadeiramente ‘ecumênico’ do Vaticano II tornou a sua recepção ainda mais complexa”[5]. Algo que marcou a história pós conciliar foi a eleição de Joseph Ratzinger como Papa Bento XVI. A escolha de Ratzinger como Papa impulsionou o debate sobre a hermenêutica do Concílio Vaticano II, e abriu as portas para se discutir como a recepção do concílio havia mudado a vida da Igreja, devido ao distanciamento entre o que foi definido no concílio e o que foi posto em pratica. Uma das maiores provas citadas por Faggioli, para sustentar o papel central do concílio no caminhar da Igreja, é que, mesmo após a morte ou aposentadoria de muitos dos bispos, teólogos e leigos ativos no Concílio Vaticano II, a sua discussão teológica, histórica e pastoral continua atual.

Não podemos nos olvidar de que, o Concílio Vaticano II foi o primeiro concilio verdadeiramente universal. Nele, de fato, representantes de todos os lugares do mundo se reuniram para debater teologia. A maior prova de que este fato é verídico são os textos debatidos no concílio e a sua recepção no mundo inteiro. O Vaticano II, foi o primeiro concílio acompanhado do início ou fim pela mídia. Isso possibilitou que a Igreja mostrasse ao mundo o novo rosto do catolicismo.

Todavia, a paz e a concórdia que se instalaram após o concílio não durariam para sempre. O debate entre agostinianos e tomistas sobre como ler, receber, aplicar e interpretar o Vaticano II começaria logo após o término do mesmo.

O Concílio Vaticano II se dividiu entre uma parcela progressista e outra conservadora. Paulo VI durante seu pontificado tentou compor a Lex Ecclesiae Fundamentalis (Lei fundamental da Igreja) para canonizar uma interpretação eclesiológica estreita do Vaticano II. Contudo, isso acabou deixando a Igreja mais cautelosa em relação às implementações do Vaticano II. Entre os conservadores está Marcel Lefebvre, que em 1970 criou a Fraternidade São Pio X; que recusa veementemente o Concílio Vaticano II. A sua excomunhão não chamou muito a atenção de todos, entretanto, quando Bento XVI interrompeu a suspensão de quatro bispos ordenados por Lefebvre; isso segundo Faggioli, “lançou luzes sobre uma brecha velada, mas muito ativa, dentro do catolicismo europeu e norte-americano relativo ao papel do Vaticano II”[6].

Nas décadas de 1980 e 1990, o debate sobre o Concílio Vaticano II foi influenciado pela política doutrinal da Santa Sé, especialmente pelo então Papa João Paulo II e pelo então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger. Eles deram uma forma política complexa ao concílio, e tornaram a herança e o significado do concílio contraditórios para os católicos contemporâneos. Em 1985, João Paulo II convocou o Sínodo dos Bispos, para superar a polarização do concílio. “Em relação à questão de como interpretar o Vaticano II, o sínodo foi resoluto em explicar que ‘não é lícito separar o caráter pastoral do vigor doutrinal dos documentos. Da mesma forma, não é legitimo separar o espírito e a letra do concílio”[7]. Em relação aos documentos conciliares, o sínodo não estabelece uma hierarquia. Mas, diz que, a interpretação teológica deve levar em consideração todos os documentos do Concílio, considerados isoladamente ou no conjunto. No entanto, deve-se dar especial atenção as constituições conciliares, a saber, Sacrosanctum Concilium, Lumen Gentium, Dei Verbum e Gaudium et Spes. Porque elas contêm a chave de leitura dos demais decretos e declarações conciliares.

O sínodo não focou na questão da continuidade ou descontinuidade do Vaticano II. Porém, “reafirmou a relação complexa entre tradição e transição na teologia católica, dizendo que ‘o concílio deve ser entendido em continuidade com a grande tradição da Igreja, e ao mesmo tempo devemos receber luz da própria doutrina do concílio para a Igreja de hoje e para os homens do nosso tempo. A Igreja é uma e a mesma através de todos os concílios”[8].

A partir da década de 1990 muitos trabalhos foram realizados para divulgar comentários, estudos histórico-críticos dos textos, matérias jornalísticas, relatos pessoais e abordagens sociológicas do Concílio Vaticano II. Giuseppe Alberigo encabeçou uma rede internacional de estudos sobre o Concílio Vaticano II, embora não pretendesse fazer novos comentários a respeito da interpretação do concílio, e sim, narrar o concílio como um acontecimento histórico da Igreja Contemporânea.

O quadragésimo aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II em 2005 foi marcado pela morte de João Paulo II e pela eleição de Bento XVI. Esse fato certamente marcou os últimos 5 anos de debate sobre o concílio. Bento XVI tomou importantes decisões durante o seu pontificado, como por exemplo: o mutu proprio de 2007 sobre liturgia, Summorum Pontificum, que permitia a celebração da missa tridentina em latim; e em 2009 a suspensão da excomunhão de bispos ordenados por Marcel Lefebvre revelou que o Papa estava disposto a estabelecer a comunhão na Igreja.

Segundo Massimo Faggioli, podemos dizer que, nos primeiros anos após o concílio, houve duas formas predominantes de recepção do mesmo. A primeira forma é marcada pelos teólogos que ficaram entusiasmados com o Vaticano II; e logo ficaram desapontados, “por causa da lentidão e indecisão em implantar as reformas pretendidas pelo Vaticano II na vida Igreja”[9]. Por outro lado, existe também os tradicionalistas, que rejeitam o Papa, e consideram que a Cátedra de Pedro está vazia deste Pio XII, cujo pontificado durou de 12 de março de 1939 a 9 de outubro de 1958 (19 anos). E mesmo os católicos que reconhecem o Papa, mas defendem a missa em latim, insistem em rotular o concílio como uma catástrofe na história da Igreja. A visão negativa do concílio é fruto das reflexões teológicas do Vaticano II em relação aos seguintes temas: “eclesiologia, ecumenismo, liberdade religiosa e Igreja e mundo moderno”[10]. Os conservadores (partidários de Lefebvre) defendem que o Vaticano II representa uma ruptura com a Tradição. Maquinam em suas mentes que os progressistas pretendem convocar um Vaticano III, e este seria o fim da doutrina católica. Esses conservadores não apenas rejeitam o concílio, eles sequer reconhecem-no como legítimo na tradição da Igreja.

Uma década após o término do Concílio, a maioria dos bispos e teólogos ativos no Vaticano II; demonstraram uma recepção reformista do concílio, e não revolucionária; como haviam sido acusados pelos tradicionalistas.

“Longe de serem radicais em sua interpretação do Vaticano II na primeira década após o concílio, alguns dos bispos e teólogos mais importantes ativos na recepção do Vaticano II pediram uma reforma da Igreja de acordo com os documentos do concílio. Ocupava o primeiro lugar nas mentes dos reformadores o término da reforma litúrgica, a implementação da colegialidade à luz da nova eclesiologia, a limitação do jurisdicismo na Igreja, a reforma da Cúria Romana, a abertura ao mundo moderno e o aprofundamento do diálogo ecumênico”[11].

“A ideia de mudança na Igreja era o verdadeiro inimigo da minoria do concílio”[12]. Entretanto, alguns dos conservadores foram se convencendo da importância da mudança da Igreja e da aprovação dos documentos conciliares. Entre eles, os cardeais Giuseppe Siri e Alfredo Ottaviani, ambos continuaram a lutar pela sua interpretação do concílio, porque o viam como um elemento perigoso na história da Igreja; embora eles não tenham seguido a diante com nenhuma ideia cismática. Os conservadores permaneceram na Igreja pós concílio, pois perceberam que as mudanças conciliares não foram tão drásticas quanto temiam.

Agora os reacionários, como Lefebvre, por exemplo; enxergavam no concílio marcas do liberalismo, do protestantismo e da maçonaria. Segundo ele, o espírito que dominou o Vaticano II, e, portanto, resultou nos documentos conciliares foi o espírito do mundo e não o Espírito Santo. Segundo Lefebvre o Vaticano II permitiu que a Igreja dialogasse com o erro, e dialogar com o erro é o mesmo que colocar Deus no mesmo nível que o diabo. Lefebvre destacava que além da invasão maçônica, houve também uma infiltração comunista na Igreja.

Do outro lado ideológico, estavam aqueles que possuíam uma mentalidade socialista, e que tachavam a Igreja de burguesa e de ser defensora do capitalismo.  “A reforma intraeclesial e o afastamento da política por parte da Igreja eram vistos pelos cristãos para o socialismo como os sinais mais evidentes de uma conciliação católica com a sociedade capitalista e, portanto, uma renúncia a apoiar a luta revolucionária”[13].

O Concílio Vaticano II foi além dos muros de Roma, a intenção de João XXIII era a de que todos pudessem participar desse momento histórico. Então o secretário pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos (secretariado que foi criado pelo próprio João XXIII em 1960) consultou o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra, enviando um convite oficial para todas as Igrejas não católicas, para que fossem a Roma observar o concílio. Haviam quarenta observadores oficiais na primeira sessão do Vaticano II. Entre eles, calcedônios do Oriente Médio, luteranos, reformados, anglicanos, Discípulos de Cristo, congregacionalistas e quacres. Mais tarde chegaram os observadores Ortodoxos e isso elevou o número de observadores para 103 na última sessão. No final do concílio já haviam 180 observadores. Alguns desses observadores auxiliaram na elaboração dos documentos conciliares relativos ao ecumenismo; principalmente nas questões que dizem respeito a Bíblia e revelação, eclesiologia e liberdade religiosa. A cooperação dos não católicos na construção dos documentos conciliares ajudou a Igreja Católica a formar um caráter ecumênico forte. Ao mesmo tempo em que crescia a apreciação dos não católicos pelo concílio; e cada vez mais eles tomavam consciência da importância dessa solene reunião para o futuro de todos os cristãos.

Os observadores ecumênicos chegaram à conclusão de que o concílio era um momento de atualização para a Igreja Católica. Essa atualização não deveria ocorre pela reafirmação dos dogmas já estabelecidos, mas, por meio da fidelidade a substância da fé. A partir do concílio a Igreja estava mais determinada a escutar os anseios do homem contemporâneo, de ir ao seu encontro, de abraça-lo e falar-lhe numa linguagem acessível. Mesmo assim, a Igreja não abriu mão de suas características próprias como os termos de eclesiologia, sacramentos e preservação do depositum fidei.

O século XX foi marcado por duas escolas teológicas católicas, a antirreformista de Pio X e a política doutrinal de Pio XII. Essas duas escolas originaram as duas revistas teológicas do concílio Concilium e Communio. A revista Concilium foi fundada em 1964 pelos teólogos Y. Congar, H. Kung, J. B. Metz, K. Rahner e E. Schillebeeckx. Todos esses teólogos estavam no grupo dos maiores teólogos europeus do século XX; e aos poucos foram se juntando teólogos do mundo inteiro. A revista Concilium é publicada em: alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, holandês e português. Os conteúdos publicados pela revista sempre estão relacionados a assuntos importantes para o público católico. A primeira edição de Concilium foi publicada em janeiro de 1965; essa primeira edição abordou o tema do dogma. Segundo Rahner e Schillebeeckx a nova teologia deveria superar os antigos manuais; e basear-se somente na Escritura e na história da salvação. A teologia precisa estar atenta a compreensão do homem de hoje. Assim, a revista procura dar continuidade a teologia do Vaticano II, principalmente no que diz respeito ao ecumenismo.

As diferentes teológicas sobre as mudanças conciliares surgiram por volta dos anos 1969 a 1972. E, a encíclica Humanae Vitae de Paulo VI, o livro A Igreja de Hans Küng e o catecismo holandês contribuíram nesse processo de discordância. Foram essas “diferenças teológicas” que causaram a criação de uma nova revista teológica, chamada Communio. Entre os teólogos fundadores estão: Hans von Balthasar, Henri de Lubac e Joseph Ratzinger; alguns desses teólogos já haviam feito parte do grupo que compunha a Concilium.

“Desde um ponto de vista teológico, os fundadores de Communio eram neoagostinianos, convencidos de que a ênfase de Concilium sobre o diálogo não dava a devida importância à revelação recebida pelos cristãos em Cristo. O acento de Communio sobre o conceito bíblico-teológico de comunhão foi descrito por von Balthasar no artigo de abertura da nova revista como, de fato, antitética à ideia de diálogo e comunhão defendida por teólogos ‘liberais’”[14].

As distinções entre as duas revistas causaram um impacto na teologia pós Vaticano II. Ambas as revistas representavam pontos de vistas distintos da teologia. Communio via o Vaticano II como validando o ressourcement como método. Já Concilium via o Vaticano II como incipit de uma regeneração da Igreja. Tudo isso contribuiu para uma nova eclesiologia, que possibilitava uma renovada atuação social da Igreja no Terceiro Mundo.

Nas décadas de 1960 a 1970 vários países sul-americanos enfrentavam regimes ditatoriais; por isso, os bispos desses países buscavam auxílio da Igreja no Vaticano II. O Vaticano II revelou uma Igreja que se preocupa com “as alegrias e as esperanças, as tristezas e a angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e a angústias dos discípulos de Cristo”[15]. Os latino-americanos acreditam que o concílio estabeleceu um novo caminho para uma nova teologia.

A recepção do concílio na Conferência de Medellín deu uma “ênfase na eclesiológia, liturgia e ecumenismo, e com um papel marginal para a teologia bíblica”[16]. A conferência de Puebla reafirmou a interpretação teológica do Concílio Vaticano II. Inicialmente o Vaticano II foi visto como um “sinal dos tempos”. Isso ficou evidenciado nas obras de dois teólogos da libertação: o espanhol Jon Sobrino e o brasileiro Leonardo Boff. Para Sobrino “a Igreja é o povo de Deus. Qualquer distinção entre hierarquia e fiel é segundaria”.

A teologia da libertação nasceu do ambiente histórico cultural do pós-concílio. E acabou ficando enraizada na mente e na práxis do catolicismo latino-americano pós-concílio. “O legado da teologia da libertação ainda está ativo e o seu impacto atravessou fronteiras geográficas e metodológicas, incorporando a mais importante interpretação teológico-política do Vaticano II, que começou já durante o concílio”[17].

A primeira fase da teologia da libertação (1968 – 1975) na América Latina possibilitou a criação de outros ramos da teologia como a teologia negra e a teologia feminista.

A teologia feminista surge em 1965, com um grupo de mulheres lideradas por Gertrud Heinzelmann com o discurso: “Não mais guardaremos silêncio”. Com uma abordagem liberacionista, nascida nos Estados Unidos. Em 1975, a revista Concilium trabalhou o tema: “mulheres na Igreja”; e anos mais tarde criou uma seção para a teologia feminista. “A teologia feminista interpretava a teologia do Vaticano II de um ponto de partida bem diferente não só com respeito à questão das mulheres na Igreja, mas também por uma abordagem totalmente ecumênica, inter-religiosa, multicultural e sociopolítica da questão da Igreja”[18].

Nos Estados Unidos duas teólogas se destacaram na corrente do feminismo liberal Anne E. Carr e Elizabeth A. Johnson. Elas entenderam o Vaticano II como uma mudança provisória. Elizabeth propõe a desconstrução da leitura sexista da Bíblia e da linguagem sexista da teologia. Assim como a teologia da libertação se propagou na América do Sul, a teologia feminista se estabeleceu na América do Norte.

Até o século XX houve uma presença muito forte da teologia cristã na Europa. Contudo, a partir do Vaticano II expandiu-se essa presença para a América Latina, África e Ásia. Na África a implementação do concílio convergiu para a evangelização, inculturação, diálogo religioso, ecumenismo e atuação sociopolítica da Igreja no continente. Já a Ásia foi o berço das religiões pré-judaica e pré-cristã principalmente a Índia e a China, isso gerou um desafio para a teologia católica nesses lugares. A América Latina preocupada com os regimes ditatoriais e desigualdades sociais se preocupou mais com a libertação do oprimido.

A chave para entender a teologia do Vaticano II é que ela ampliou as raízes da teologia cristã; que antes do Concílio eram apenas gregas, europeias e ocidentais; depois do Concílio elas passam a ser globais.

Também existe a relação entre a Igreja e o Mundo, sobretudo, vale a pena analisar particularmente essa questão durante o pontificado de João Paulo II. Em todo a história de recepção e interpretação do concílio houve dois grandes grupos: os liberais e os progressistas, de um lado, e conservadores de outro. Porém, o problema não está envolto apenas por ideologias, existe uma problemática por trás. Isto é, uma divisão de correntes teológicas e filosóficas, entre neoagostinianos (filosofia platônica) e neotomistas (filosofia aristotélica). Segundo Gérard Philips havia no concílio duas tendências: uma ávida em permanecer fiel a uma mensagem tradicional, e outra, preocupada em divulgar a mensagem ao homem contemporâneo.

No grupo dos teólogos neoagostinianos, que veem a Igreja como uma ilha cheia de graça dentro de um mundo pecador estão: Joseph Ratzinger, Henri de Lubac, Jean Daniélou, Hans Urs von Balthasar e Louis Bouyer que compartilhavam uma afinidade comum por uma teologia monástica, medieval e mantinham-se distantes da interpretação neotomista do concílio. No entanto, diferente de Lefebvre nenhum desses teólogos se tornou cismáticos, todos eles reconhecem o Vaticano II como legítimo concílio da Igreja.

O segundo grupo são os neotomistas, entre eles estão: Congar, Marie-Dominique Chenu e Schillebeeckx. Eles sabiam que para entender o aggiornamento proposto pelo Vaticano II era necessário entender a teologia católica em ato, e absolver a contribuição das ciências sociais para perceber os “sinais dos tempos”. Os neotomistas tinham claro em suas mentes que, é preciso adotar o método de Tomás de Aquino, e não se prender as conclusões do doutor angélico; pois, elas estão restritas a uma época da história que não volta mais.

Em 2005 se encerrou uma fase de transmissão, recepção e aplicação do concílio, com a eleição de Bento XVI. Ele possui uma postura diversa de seu antecessor. De 2005 a 2007 cresceu o sentimento de rejeição da historicidade do concílio. Inclusive o historiador Alberigo foi alvo de críticas ferrenhas, por escrever um livro ideológico sobre o Vaticano II. Mas, essas críticas foram frutos do pontificado de Bento XVI.

Mas, a História do Vaticano II em cinco volumes, editada por Alberigo e Joseph Komonch, forneceu informações novas sobre o debate litúrgico dentro do Concílio Vaticano II. No entanto, outros estudos mostram a continuidade ideológica entre o movimento litúrgico do começo do século XX e a Sacrosanctum Concilium.

Nos estudos publicados em ocasião do quadragésimo aniversário da Sacrosanctum Concilium; mais especificamente no Comentário teológico de Herder ao Segundo Concílio Vaticano, Reiner Kaczynski destacou a centralidade do mysterium pascal, não apenas como centro da Constituição[19], mas também, como centro do Concílio Vaticano II como um todo.

“A hermenêutica da Sacrosanctum Concilium na vida da Igreja está longe de ser puramente teórica. No debate infindável nos anos recentes acerca do sentido da constituição, é difícil distinguir os debatedores, que são conscientes do que está em jogo, dos teólogos que tratam da reforma litúrgica como apenas uma questão entre muitas”[20]. Todavia, a consciência dos teólogos a respeito da reforma litúrgica permanece a mesma cinquenta anos depois. Mesmo assim, celebrar os cinquenta anos da Constituição Sacrosanctum Concilium é uma oportunidade para retomar o debate litúrgico sobre a reforma.

Após a eleição de Bento XVI “a narrativa católica conservadora sobre o Vaticano II recebeu um formidável impulso”[21]. Apesar de que, a mentalidade anti-vaticano II já era bem evidente no pontificado de João Paulo II. Para o Papa Bento XVI a hermenêutica da reforma prevaleceu sobre a hermenêutica da descontinuidade. O atual Papa Emérito frisou em seu discurso a Cúria Romana que, não existe um “espírito do concílio”. A ideia de um “espírito do concílio” defende que as decisões e novidades do Concílio Vaticano II não estão restritas ao texto, mas que, somente progredindo e indo além dos textos é que se encontra o verdadeiro espírito do Concílio.

“Em síntese: seria necessário seguir não os textos do concílio, mas o seu espírito. Desse modo, obviamente, permanecem uma vasta margem para a pergunta sobre o modo como, então, se define esse espírito e, por conseguinte, se concede espaço a toda a inconstância”[22]. Na sequência, o papa emérito continua: o concílio não pode ser interpretado como sendo uma nova constituição que aboliu a antiga. E sim, deve ser interpretado como aquilo que de fato é: o vigésimo primeiro concilio da Igreja.

Gilles Routhier destacou o papel de receptor no contexto da recepção teológica do Vaticano II. Ele chamou a atenção para o conceito de Vaticano II, como um Concílio de reforma e a importância de uma nova fase de “conciliaridade regional e continental” para a recepção do concílio. Sublinhou a natureza do Concílio Vaticano II, como um concílio que abriu as portas da Igreja para uma nova era e a necessidade de uma Igreja pós-conciliar, com uma eclesiologia prática que leve em conta a dimensão colegial e sinodal expressa nos documentos do Vaticano II: “Provavelmente não precisamos hoje de um [Concílio Vaticano III], mas precisamos permitir que cada nível da Igreja Católica e as culturas em que vive dê nova vida à vida sinodal e dê novos meios de expressão à conciliaridade da Igreja”[23].

Karl Rahner defende que o concílio é o começo de uma renovação para o catolicismo. Segundo o cardeal Lehmann a interpretação do Vaticano II vem de uma dinâmica teológica que é fruto do sopro do Espírito Santo. É claro que nem toda mudança advém do Espírito, entretanto, existem coisas que claramente foram inspiração do alto. Aceitar o concílio como um novo começo para Igreja é aceitar que ele é um acontecimento do Espírito. Já aqueles que reconhecem o concílio como um fim possuem uma visão pneumatológica negativa, tanto do período do Vaticano II como do pós Vaticano II.

Análise crítica a partir de Giuseppe Alberigo

Convém agora situar alguns contextos históricos do Concílio Vaticano II. E para tal atividade, faremos uso da pesquisa de Giuseppe Alberigo. Em seu livro História dos Concílios Ecumênicos Alberigo destaca que após o dogma da Infalibilidade papal que foi decretado no Concílio Vaticano I; muitos acreditaram que não haveria mais convocação de outros concílios; porque o Papa teria alteridade para determinar todas as coisas sobre fé e moral.

“Se a cúpula eclesiástica romana e a escola teológica simétrica a ela pareciam convocadas de que a exacerbação hierárquica e o imobilismo doutrinário garantiam a integridade da fé e da Igreja, em muitas áreas católicas e, sobretudo, na Europa centro-ocidental começou, nos anos trinta, uma formação pró-renovação. Assim, especialmente no decênio que precede o segundo conflito mundial, assiste-se à nucleação espontânea de “movimentos”, que promovem novas experiências de vida cristã tanto em nível pastoral (busca de uma liturgia participada, consciência da necessidade de uma re-evangelização), espiritual (retorno à Bíblia, revival monástico), teológico (volta às “fontes”, abordagem indutiva), quando eclesial (posição ativa dos leigos, consciência ecumênica). Acumulava-se, por isso, uma soma de experiências e de reflexões que geravam expectativas de renovação, às vezes timidamente avaliadas – como no caso da exegese bíblica ou da liturgia –, às vezes distorcidas, como para a reflexão eclesiológica, em vários casos não correspondidas e até severamente reprimidas (ecumenismo, théologie nouvelle)”[24].

O anúncio da convocação do Vaticano II foi algo totalmente inesperado por todos. Primeiro por causa do período da Guerra Fria, que havia se instalado no mundo após duas grandes guerras mundiais. Segundo, porque João XXIII era visto como um Papa de transição e não se esperava que ele fizesse qualquer coisa que pudesse mudar drasticamente o rumo da Igreja. Sabendo que não poderia perder tempo, devido a sua idade já avançada, no dia 17 de maio de 1959 João XXIII constitui a comissão preparatória do concílio. Essa comissão deveria recolher as opiniões e sugestões de bispos, de universidades e faculdades católicas e dos organismos da cúria. João XXIII queria que o Concílio Vaticano II fosse algo novo na vida da Igreja, e não apenas a remada do Concílio Vaticano I.

Em 11 de outubro de 1962 foi celebrada a solene abertura do concílio. Entre os presentes estavam padres conciliares, peritos e convidados. Em seu discurso o Papa destacou os motivos que o levaram a convocação do Vaticano II. Um dos principais temas tratados no concílio foi a reforma litúrgica e a aprovação da língua vernácula na liturgia. Isso significou para muitos que, a Igreja estava realmente preocupada em fazer a mensagem evangélica chegar a todos.

Segundo Giuseppe Alberigo o uso da língua vernácula na missa significou um grande passo para o diálogo entre a Igreja e os pobres. Na concepção de muitos estudiosos, tanto em países desenvolvidos quanto em países de Terceiro Mundo, havia uma grande separação entre a Igreja e os pobres; para este grupo a Igreja havia se identificado com o capitalismo.

A 14 de novembro deu-se início ao debate sobre as “fontes da revelação”. O próprio título já causava discórdia entre os padres conciliares. O pensamento protestante havia entrado de tal forma dentro da Igreja Católica que, muitos dos padres conciliares não comungavam da ideia de posicionar a Tradição no mesmo nível da Sagrada Escritura. Mais tarde reafirmou-se a importância da relação entre a Bíblia e a tradição. Embora os peritos não tenham dado conclusões sobre o assunto.

No dia 3 de junho de 1963, dia de Pentecostes, o Papa João XXIII partiu deste mundo; e sua morte foi muito significante para a Igreja e para o mundo. Antes de morrer o Papa havia escrito a encíclica Pacem in Terris, onde o Sumo Pontífice dirigiu-se não só aos membros da Igreja, mas a todos os homens de boa vontade. O Papa bom trouxe à tona temas como a caridade e a unidade, e foi bastante carismático porque não se prendia as estruturas do Vaticano. Contudo, a pergunta que mais marcou a morte de João XXIII foi: o que fará o seu sucessor? Todos tinham consciência de que haviam muitos opositores ao concílio e, que se obtivessem o apoio do novo Papa o concílio seria interrompido.

O conclave de 19-21 de junho elegeu o Cardeal Montini, que assumiu o nome de Paulo VI. Montini fora membro da comissão preparatória do concílio, e para responder a todos aqueles que estavam ansiosos por saber qual seria a postura do novo Papa em relação ao Concílio Vaticano II, ele afirmou: “Poderíamos nós abandonar um caminho tão magistralmente desenhado por João XXIII, visando inclusive o futuro? Temos razões para acreditar que não”. “No dia 27 de junho, o secretário de Estado anunciou que o Papa havia determinado não só a continuação do concílio, mas fixado o dia 29 de setembro para a retomada dos trabalhos, que ficara assim adiada só em duas semanas, que tinha sido a duração da vacância da sede de Pedro”[25]. Assim que Paulo VI retomou os trabalhos, a 29 de setembro de 1963, relembrou os quatro objetivos do concílio: a exposição da teologia da Igreja, a sua renovação interior, a promoção da unidade dos cristãos e o diálogo com o mundo.

O Concílio foi dividido em três grandes períodos; durante o concílio houve a elaboração de 16 documentos, cerca de 2.200 (dois mil e duzentos) bispos se reuniram em 4 sessões do Vaticano II. Entre os 16 documentos temos 4 constituições (Sacrosanctum Concilium, Lumen Gentium, Dei Verbum e Gaudium et Spes), 9 decretos (Inter Mirifica, Orientalium Ecclesiarum, Unitatis Redintegratio, Christus Dominus, Perfectae Caritatis, Optatam Totius, Apostolicam Actuositatem, Ad Gentes e Presbyterorum Ordinis) e 3 declarações (Gravissimum Educationis, Nostra Aetate e Dignitatis Humanae). A 8 de dezembro de 1965 celebrou-se solenemente o encerramento oficial do Concílio Vaticano II no adro de São Pedro.

Conclusão

O Concílio Vaticano II foi um grande marco e um verdadeiro divisor de águas dentro do catolicismo. A convocação do Concílio feita por João XXIII tinha como intenção, abrir as portas da Igreja para um futuro ainda desconhecido. João XXIII sentiu-se impulsionado a tomar essa atitude, porque muitos acreditavam que o seu pontificado seria apenas um pontificado de transição, que prepararia a Igreja para um novo Papa. Impelido pelo Espírito Santo ele convocou essa solene reunião, para que a Igreja pudesse atualizar a sua linguagem, e assim, estivesse pronta para dialogar com a modernidade.

João XXIII teve todo uma história de diálogo com pessoas que possuíam pensamentos e até crenças diferentes das suas. Ele sabia que todos eram seus irmãos em Cristo, e não se recusava a estender as mãos para os necessitados, mesmo se fossem de outras religiões. Todo esse itinerário de diálogo inter-religioso e ecumênico o tornou um Papa aberto ao diferente, disposto a conversar, e sempre preocupado em realizar a vontade de Deus.

Com a morte de João XXIII e a eleição de Paulo VI, o concílio passou por um grande dilema; pois havia a possibilidade de o concílio ser interrompido pelo novo Papa. No entanto, esses rumores não se concretizaram. Paulo VI assumiu o papado disposto a continuar a obra de seu antecessor. E no encerramento do concílio, Paulo VI se dirigiu a todos os homens independente de seus status sociais, idades ou gêneros. Demonstrando com isso que, a Igreja é a Mãe de todos e está com as portas abertas para acolher a todos. E assim, por meio desses dois homens, o Espírito Santo soprou mais uma vez sobre a sua esposa a Igreja; dando-lhe novo vigor.


 

Referências Bibliográficas

Alberigo, Giuseppe. História do Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

Cons. Past. Gaudium Et Spes

Discurso Inaugural de sua Santidade o Papa João XXIII na abertura do CVII.

Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013.



[1] Aggiornamento é um termo italiano, que significa "atualização".

[2] Discurso Inaugural de sua Santidade o Papa João XXIII na abertura do CVII.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Cf. Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 21.

[6] Ibid. p. 33.

[7] Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 35.

[8] Ibid. p. 36.

[9] Ibid. p. 45.

[10] Ibid. p. 46.

[11] Ibid. p. 47.

[12] Ibid. p. 52.

[13] Ibid. p. 65.

[14] Ibid. p. 84 – 85.

[15] Cons. Past. Gaudium Et Spes n. 1.

[16] Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 88.

[17] Ibid. p. 89.

[18] Ibid. p. 90.

[19] Sacrosanctum Concilium

[20] Alberigo, Giuseppe. História do Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995 p. 151.

[21] Ibid. p. 153.

[22] Ibid. p. 159.

[23] Cf. Ibid. p. 163.

[24] Alberigo, Giuseppe. História do Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995 p. 394.

[25] Ibid. p. 409.

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