Vaticano II A luta pelo sentido
Vaticano II A luta
pelo sentido
Massimo
Faggioli oferece em seu livro: Vaticano
II A luta pelo sentido um resumo do Concílio Ecumênico Vaticano II e de sua
recepção nos mais variados setores como a cultura, a política e o próprio setor
religioso. Retrata o debate que houve dentro do próprio concílio, sobre o seu
significado e o alcance pastoral e doutrinal de seus documentos. Ressalta ainda
que, devido a interpretação muitas vezes ideológica do concílio, ele foi aceito
ou rejeitado por muitos grupos. E não foi visto como aquilo que de fato ele é,
isto é, o vigésimo primeiro concílio ecumênico da Igreja.
O Concílio
Vaticano II, segundo Faggioli, abriu as portas da Igreja para o diálogo com as
outras denominações cristãs, com os judeus e com os não-cristãos. E, ao mesmo
tempo, o autor do livro tentou situar também, o debate histórico entre
agostinianos e tomistas durante o concilio e no período do pós-concílio. O
Vaticano II foi um concílio de Aggiornamento[1],
isto é, a chave para entender o Concílio Vaticano II é a “atualização”;
buscou-se modernizar a linguagem da Igreja, para que a doutrina perene da mesma
fosse apresentada ao mundo moderno, num vocabulário acessível a todos.
Vale a
pena citar alguns pontos do discurso de Sua Santidade o Papa João XXIII na
abertura solene do Concílio Ecumênico Vaticano II. “O gesto do mais recente e
humilde sucessor de São Pedro que vos fala, de convocar esta soleníssima
reunião, pretendeu afirmar, mais uma vez, a continuidade do magistério
eclesiástico, para o apresentar, em forma excepcional, a todos os homens do
nosso tempo, tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades deste
nosso tempo”[2].
É natural que durante este concílio se ouçam as vozes dos antigos pontífices,
que desde os primórdios da Igreja deram o testemunho da graça de Deus em suas
vidas. O Papa destacou que: “o que mais importa ao Concílio Ecumênico é o
seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de
forma mais eficaz. Essa doutrina abarca o homem inteiro, composto de alma e
corpo, e a nós, peregrinos nesta terra, manda-nos tender para a pátria celeste”[3].
A doutrina fundamental da Igreja está enraizada em Cristo e nos apóstolos; e
depois foi sistematizada pelos Padres da Igreja. Isto é o que chamamos de
Sagrada Escritura e Sagrada Tradição. Por isso o Papa João XXIII nos lembra
que, “uma coisa é a substância do ‘depositum
fidei’, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a
formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e
o mesmo alcance”[4].
Ao estudar
a história dos 21 concílios da Igreja Católica, percebemos que todos eles
tiveram de passar por um período longo de recepção. Além disso, “o impacto
verdadeiramente ‘ecumênico’ do Vaticano II tornou a sua recepção ainda mais
complexa”[5].
Algo que marcou a história pós conciliar foi a eleição de Joseph Ratzinger como
Papa Bento XVI. A escolha de Ratzinger como Papa impulsionou o debate sobre a
hermenêutica do Concílio Vaticano II, e abriu as portas para se discutir como a
recepção do concílio havia mudado a vida da Igreja, devido ao distanciamento
entre o que foi definido no concílio e o que foi posto em pratica. Uma das
maiores provas citadas por Faggioli, para sustentar o papel central do concílio
no caminhar da Igreja, é que, mesmo após a morte ou aposentadoria de muitos dos
bispos, teólogos e leigos ativos no Concílio Vaticano II, a sua discussão
teológica, histórica e pastoral continua atual.
Não
podemos nos olvidar de que, o Concílio Vaticano II foi o primeiro concilio
verdadeiramente universal. Nele, de fato, representantes de todos os lugares do
mundo se reuniram para debater teologia. A maior prova de que este fato é
verídico são os textos debatidos no concílio e a sua recepção no mundo inteiro.
O Vaticano II, foi o primeiro concílio acompanhado do início ou fim pela mídia.
Isso possibilitou que a Igreja mostrasse ao mundo o novo rosto do catolicismo.
Todavia, a
paz e a concórdia que se instalaram após o concílio não durariam para sempre. O
debate entre agostinianos e tomistas sobre como ler, receber, aplicar e
interpretar o Vaticano II começaria logo após o término do mesmo.
O Concílio
Vaticano II se dividiu entre uma parcela progressista e outra conservadora.
Paulo VI durante seu pontificado tentou compor a Lex Ecclesiae Fundamentalis (Lei fundamental da Igreja) para
canonizar uma interpretação eclesiológica estreita do Vaticano II. Contudo,
isso acabou deixando a Igreja mais cautelosa em relação às implementações do
Vaticano II. Entre os conservadores está Marcel Lefebvre, que em 1970 criou a Fraternidade
São Pio X; que recusa veementemente o Concílio Vaticano II. A sua excomunhão
não chamou muito a atenção de todos, entretanto, quando Bento XVI interrompeu a
suspensão de quatro bispos ordenados por Lefebvre; isso segundo Faggioli,
“lançou luzes sobre uma brecha velada, mas muito ativa, dentro do catolicismo
europeu e norte-americano relativo ao papel do Vaticano II”[6].
Nas
décadas de 1980 e 1990, o debate sobre o Concílio Vaticano II foi influenciado
pela política doutrinal da Santa Sé, especialmente pelo então Papa João Paulo
II e pelo então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph
Ratzinger. Eles deram uma forma política complexa ao concílio, e tornaram a
herança e o significado do concílio contraditórios para os católicos contemporâneos.
Em 1985, João Paulo II convocou o Sínodo dos Bispos, para superar a polarização
do concílio. “Em relação à questão de como interpretar o Vaticano II, o sínodo
foi resoluto em explicar que ‘não é lícito separar o caráter pastoral do vigor doutrinal
dos documentos. Da mesma forma, não é legitimo separar o espírito e a letra do
concílio”[7].
Em relação aos documentos conciliares, o sínodo não estabelece uma hierarquia.
Mas, diz que, a interpretação teológica deve levar em consideração todos os documentos
do Concílio, considerados isoladamente ou no conjunto. No entanto, deve-se dar
especial atenção as constituições conciliares, a saber, Sacrosanctum Concilium, Lumen
Gentium, Dei Verbum e Gaudium et Spes. Porque elas contêm a
chave de leitura dos demais decretos e declarações conciliares.
O sínodo
não focou na questão da continuidade ou descontinuidade do Vaticano II. Porém,
“reafirmou a relação complexa entre tradição e transição na teologia católica,
dizendo que ‘o concílio deve ser entendido em continuidade com a grande
tradição da Igreja, e ao mesmo tempo devemos receber luz da própria doutrina do
concílio para a Igreja de hoje e para os homens do nosso tempo. A Igreja é uma
e a mesma através de todos os concílios”[8].
A partir
da década de 1990 muitos trabalhos foram realizados para divulgar comentários,
estudos histórico-críticos dos textos, matérias jornalísticas, relatos pessoais
e abordagens sociológicas do Concílio Vaticano II. Giuseppe Alberigo encabeçou
uma rede internacional de estudos sobre o Concílio Vaticano II, embora não
pretendesse fazer novos comentários a respeito da interpretação do concílio, e
sim, narrar o concílio como um acontecimento histórico da Igreja Contemporânea.
O
quadragésimo aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II em 2005 foi
marcado pela morte de João Paulo II e pela eleição de Bento XVI. Esse fato
certamente marcou os últimos 5 anos de debate sobre o concílio. Bento XVI tomou
importantes decisões durante o seu pontificado, como por exemplo: o mutu proprio de 2007 sobre liturgia, Summorum Pontificum, que permitia a
celebração da missa tridentina em latim; e em 2009 a suspensão da excomunhão de
bispos ordenados por Marcel Lefebvre revelou que o Papa estava disposto a
estabelecer a comunhão na Igreja.
Segundo Massimo
Faggioli, podemos dizer que, nos
primeiros anos após o concílio, houve duas formas predominantes de recepção do
mesmo. A primeira forma é marcada pelos teólogos que ficaram entusiasmados com
o Vaticano II; e logo ficaram desapontados, “por causa da lentidão e indecisão
em implantar as reformas pretendidas pelo Vaticano II na vida Igreja”[9].
Por outro lado, existe também os tradicionalistas, que rejeitam o Papa, e
consideram que a Cátedra de Pedro está vazia deste Pio XII, cujo pontificado durou
de 12 de março de 1939 a 9 de outubro de 1958 (19 anos). E mesmo os católicos
que reconhecem o Papa, mas defendem a missa em latim, insistem em rotular o
concílio como uma catástrofe na história da Igreja. A visão negativa do
concílio é fruto das reflexões teológicas do Vaticano II em relação aos
seguintes temas: “eclesiologia, ecumenismo, liberdade religiosa e Igreja e
mundo moderno”[10].
Os conservadores (partidários de Lefebvre) defendem que o Vaticano II
representa uma ruptura com a Tradição. Maquinam em suas mentes que os
progressistas pretendem convocar um Vaticano III, e este seria o fim da
doutrina católica. Esses conservadores não apenas rejeitam o concílio, eles
sequer reconhecem-no como legítimo na tradição da Igreja.
Uma década
após o término do Concílio, a maioria dos bispos e teólogos ativos no Vaticano
II; demonstraram uma recepção reformista do concílio, e não revolucionária;
como haviam sido acusados pelos tradicionalistas.
“Longe de
serem radicais em sua interpretação do Vaticano II na primeira década após o
concílio, alguns dos bispos e teólogos mais importantes ativos na recepção do
Vaticano II pediram uma reforma da Igreja de acordo com os documentos do
concílio. Ocupava o primeiro lugar nas mentes dos reformadores o término da
reforma litúrgica, a implementação da colegialidade à luz da nova eclesiologia,
a limitação do jurisdicismo na Igreja, a reforma da Cúria Romana, a abertura ao
mundo moderno e o aprofundamento do diálogo ecumênico”[11].
“A ideia
de mudança na Igreja era o verdadeiro inimigo da minoria do concílio”[12].
Entretanto, alguns dos conservadores foram se convencendo da importância da
mudança da Igreja e da aprovação dos documentos conciliares. Entre eles, os
cardeais Giuseppe Siri e Alfredo Ottaviani, ambos continuaram a lutar pela sua
interpretação do concílio, porque o viam como um elemento perigoso na história
da Igreja; embora eles não tenham seguido a diante com nenhuma ideia cismática.
Os conservadores permaneceram na Igreja pós concílio, pois perceberam que as
mudanças conciliares não foram tão drásticas quanto temiam.
Agora os
reacionários, como Lefebvre, por exemplo; enxergavam no concílio marcas do
liberalismo, do protestantismo e da maçonaria. Segundo ele, o espírito que
dominou o Vaticano II, e, portanto, resultou nos documentos conciliares foi o
espírito do mundo e não o Espírito Santo. Segundo Lefebvre o Vaticano II
permitiu que a Igreja dialogasse com o erro, e dialogar com o erro é o mesmo
que colocar Deus no mesmo nível que o diabo. Lefebvre destacava que além da invasão
maçônica, houve também uma infiltração comunista na Igreja.
Do outro
lado ideológico, estavam aqueles que possuíam uma mentalidade socialista, e que
tachavam a Igreja de burguesa e de ser defensora do capitalismo. “A reforma intraeclesial e o afastamento da
política por parte da Igreja eram vistos pelos cristãos para o socialismo como
os sinais mais evidentes de uma conciliação católica com a sociedade
capitalista e, portanto, uma renúncia a apoiar a luta revolucionária”[13].
O Concílio
Vaticano II foi além dos muros de Roma, a intenção de João XXIII era a de que
todos pudessem participar desse momento histórico. Então o secretário
pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos (secretariado que foi criado
pelo próprio João XXIII em 1960) consultou o Conselho Mundial de Igrejas em
Genebra, enviando um convite oficial para todas as Igrejas não católicas, para
que fossem a Roma observar o concílio. Haviam quarenta observadores oficiais na
primeira sessão do Vaticano II. Entre eles, calcedônios do Oriente Médio,
luteranos, reformados, anglicanos, Discípulos de Cristo, congregacionalistas e
quacres. Mais tarde chegaram os observadores Ortodoxos e isso elevou o número
de observadores para 103 na última sessão. No final do concílio já haviam 180 observadores.
Alguns desses observadores auxiliaram na elaboração dos documentos conciliares
relativos ao ecumenismo; principalmente nas questões que dizem respeito a
Bíblia e revelação, eclesiologia e liberdade religiosa. A cooperação dos não
católicos na construção dos documentos conciliares ajudou a Igreja Católica a
formar um caráter ecumênico forte. Ao mesmo tempo em que crescia a apreciação
dos não católicos pelo concílio; e cada vez mais eles tomavam consciência da
importância dessa solene reunião para o futuro de todos os cristãos.
Os
observadores ecumênicos chegaram à conclusão de que o concílio era um momento
de atualização para a Igreja Católica. Essa atualização não deveria ocorre pela
reafirmação dos dogmas já estabelecidos, mas, por meio da fidelidade a
substância da fé. A partir do concílio a Igreja estava mais determinada a
escutar os anseios do homem contemporâneo, de ir ao seu encontro, de abraça-lo
e falar-lhe numa linguagem acessível. Mesmo assim, a Igreja não abriu mão de
suas características próprias como os termos de eclesiologia, sacramentos e
preservação do depositum fidei.
O século
XX foi marcado por duas escolas teológicas católicas, a antirreformista de Pio
X e a política doutrinal de Pio XII. Essas duas escolas originaram as duas revistas
teológicas do concílio Concilium e Communio. A revista Concilium foi fundada em 1964 pelos teólogos Y. Congar, H. Kung, J.
B. Metz, K. Rahner e E. Schillebeeckx. Todos esses teólogos estavam no grupo
dos maiores teólogos europeus do século XX; e aos poucos foram se juntando
teólogos do mundo inteiro. A revista Concilium
é publicada em: alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, holandês e
português. Os conteúdos publicados pela revista sempre estão relacionados a
assuntos importantes para o público católico. A primeira edição de Concilium foi publicada em janeiro de
1965; essa primeira edição abordou o tema do dogma. Segundo Rahner e
Schillebeeckx a nova teologia deveria superar os antigos manuais; e basear-se
somente na Escritura e na história da salvação. A teologia precisa estar atenta
a compreensão do homem de hoje. Assim, a revista procura dar continuidade a
teologia do Vaticano II, principalmente no que diz respeito ao ecumenismo.
As
diferentes teológicas sobre as mudanças conciliares surgiram por volta dos anos
1969 a 1972. E, a encíclica Humanae Vitae
de Paulo VI, o livro A Igreja de Hans
Küng e o catecismo holandês contribuíram nesse processo de discordância. Foram
essas “diferenças teológicas” que causaram a criação de uma nova revista teológica,
chamada Communio. Entre os teólogos
fundadores estão: Hans von Balthasar, Henri de Lubac e Joseph Ratzinger; alguns
desses teólogos já haviam feito parte do grupo que compunha a Concilium.
“Desde um
ponto de vista teológico, os fundadores de Communio
eram neoagostinianos, convencidos de que a ênfase de Concilium sobre o diálogo não dava a devida importância à revelação
recebida pelos cristãos em Cristo. O acento de Communio sobre o conceito bíblico-teológico de comunhão foi
descrito por von Balthasar no artigo de abertura da nova revista como, de fato,
antitética à ideia de diálogo e comunhão defendida por teólogos ‘liberais’”[14].
As
distinções entre as duas revistas causaram um impacto na teologia pós Vaticano
II. Ambas as revistas representavam pontos de vistas distintos da teologia. Communio via o Vaticano II como
validando o ressourcement como
método. Já Concilium via o Vaticano
II como incipit de uma regeneração da
Igreja. Tudo isso contribuiu para uma nova eclesiologia, que possibilitava uma
renovada atuação social da Igreja no Terceiro Mundo.
Nas
décadas de 1960 a 1970 vários países sul-americanos enfrentavam regimes
ditatoriais; por isso, os bispos desses países buscavam auxílio da Igreja no
Vaticano II. O Vaticano II revelou uma Igreja que se preocupa com “as alegrias
e as esperanças, as tristezas e a angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e a angústias dos discípulos de Cristo”[15]. Os
latino-americanos acreditam que o concílio estabeleceu um novo caminho para uma
nova teologia.
A recepção
do concílio na Conferência de Medellín deu uma “ênfase na eclesiológia,
liturgia e ecumenismo, e com um papel marginal para a teologia bíblica”[16].
A conferência de Puebla reafirmou a interpretação teológica do Concílio
Vaticano II. Inicialmente o Vaticano II foi visto como um “sinal dos tempos”.
Isso ficou evidenciado nas obras de dois teólogos da libertação: o espanhol Jon
Sobrino e o brasileiro Leonardo Boff. Para Sobrino “a Igreja é o povo de Deus.
Qualquer distinção entre hierarquia e fiel é segundaria”.
A teologia
da libertação nasceu do ambiente histórico cultural do pós-concílio. E acabou
ficando enraizada na mente e na práxis do catolicismo latino-americano pós-concílio.
“O legado da teologia da libertação ainda está ativo e o seu impacto atravessou
fronteiras geográficas e metodológicas, incorporando a mais importante
interpretação teológico-política do Vaticano II, que começou já durante o
concílio”[17].
A primeira
fase da teologia da libertação (1968 – 1975) na América Latina possibilitou a
criação de outros ramos da teologia como a teologia negra e a teologia
feminista.
A teologia
feminista surge em 1965, com um grupo de mulheres lideradas por Gertrud
Heinzelmann com o discurso: “Não mais guardaremos silêncio”. Com uma abordagem
liberacionista, nascida nos Estados Unidos. Em 1975, a revista Concilium trabalhou o tema: “mulheres na
Igreja”; e anos mais tarde criou uma seção para a teologia feminista. “A
teologia feminista interpretava a teologia do Vaticano II de um ponto de
partida bem diferente não só com respeito à questão das mulheres na Igreja, mas
também por uma abordagem totalmente ecumênica, inter-religiosa, multicultural e
sociopolítica da questão da Igreja”[18].
Nos
Estados Unidos duas teólogas se destacaram na corrente do feminismo liberal
Anne E. Carr e Elizabeth A. Johnson. Elas entenderam o Vaticano II como uma
mudança provisória. Elizabeth propõe a desconstrução da leitura sexista da
Bíblia e da linguagem sexista da teologia. Assim como a teologia da libertação
se propagou na América do Sul, a teologia feminista se estabeleceu na América
do Norte.
Até o
século XX houve uma presença muito forte da teologia cristã na Europa. Contudo,
a partir do Vaticano II expandiu-se essa presença para a América Latina, África
e Ásia. Na África a implementação do concílio convergiu para a evangelização,
inculturação, diálogo religioso, ecumenismo e atuação sociopolítica da Igreja
no continente. Já a Ásia foi o berço das religiões pré-judaica e pré-cristã
principalmente a Índia e a China, isso gerou um desafio para a teologia
católica nesses lugares. A América Latina preocupada com os regimes ditatoriais
e desigualdades sociais se preocupou mais com a libertação do oprimido.
A chave
para entender a teologia do Vaticano II é que ela ampliou as raízes da teologia
cristã; que antes do Concílio eram apenas gregas, europeias e ocidentais;
depois do Concílio elas passam a ser globais.
Também
existe a relação entre a Igreja e o Mundo, sobretudo, vale a pena analisar
particularmente essa questão durante o pontificado de João Paulo II. Em todo a
história de recepção e interpretação do concílio houve dois grandes grupos: os
liberais e os progressistas, de um lado, e conservadores de outro. Porém, o
problema não está envolto apenas por ideologias, existe uma problemática por
trás. Isto é, uma divisão de correntes teológicas e filosóficas, entre
neoagostinianos (filosofia platônica) e neotomistas (filosofia aristotélica).
Segundo Gérard Philips havia no concílio duas tendências: uma ávida em
permanecer fiel a uma mensagem tradicional, e outra, preocupada em divulgar a
mensagem ao homem contemporâneo.
No grupo
dos teólogos neoagostinianos, que veem a Igreja como uma ilha cheia de graça dentro
de um mundo pecador estão: Joseph Ratzinger, Henri de Lubac, Jean Daniélou,
Hans Urs von Balthasar e Louis Bouyer que compartilhavam uma afinidade comum
por uma teologia monástica, medieval e mantinham-se distantes da interpretação
neotomista do concílio. No entanto, diferente de Lefebvre nenhum desses
teólogos se tornou cismáticos, todos eles reconhecem o Vaticano II como
legítimo concílio da Igreja.
O segundo
grupo são os neotomistas, entre eles estão: Congar, Marie-Dominique Chenu e
Schillebeeckx. Eles sabiam que para entender o aggiornamento proposto pelo Vaticano II era necessário entender a
teologia católica em ato, e absolver a contribuição das ciências sociais para
perceber os “sinais dos tempos”. Os neotomistas tinham claro em suas mentes
que, é preciso adotar o método de Tomás de Aquino, e não se prender as
conclusões do doutor angélico; pois, elas estão restritas a uma época da
história que não volta mais.
Em 2005 se
encerrou uma fase de transmissão, recepção e aplicação do concílio, com a eleição
de Bento XVI. Ele possui uma postura diversa de seu antecessor. De 2005 a 2007
cresceu o sentimento de rejeição da historicidade do concílio. Inclusive o
historiador Alberigo foi alvo de críticas ferrenhas, por escrever um livro
ideológico sobre o Vaticano II. Mas, essas críticas foram frutos do pontificado
de Bento XVI.
Mas, a História do Vaticano II em cinco
volumes, editada por Alberigo e Joseph Komonch, forneceu informações novas
sobre o debate litúrgico dentro do Concílio Vaticano II. No entanto, outros
estudos mostram a continuidade ideológica entre o movimento litúrgico do começo
do século XX e a Sacrosanctum Concilium.
Nos
estudos publicados em ocasião do quadragésimo aniversário da Sacrosanctum Concilium; mais
especificamente no Comentário teológico
de Herder ao Segundo Concílio Vaticano, Reiner Kaczynski destacou a
centralidade do mysterium pascal, não
apenas como centro da Constituição[19],
mas também, como centro do Concílio Vaticano II como um todo.
“A
hermenêutica da Sacrosanctum Concilium
na vida da Igreja está longe de ser puramente teórica. No debate infindável nos
anos recentes acerca do sentido da constituição, é difícil distinguir os
debatedores, que são conscientes do que está em jogo, dos teólogos que tratam
da reforma litúrgica como apenas uma questão entre muitas”[20].
Todavia, a consciência dos teólogos a respeito da reforma litúrgica permanece a
mesma cinquenta anos depois. Mesmo assim, celebrar os cinquenta anos da
Constituição Sacrosanctum Concilium é
uma oportunidade para retomar o debate litúrgico sobre a reforma.
Após a
eleição de Bento XVI “a narrativa católica conservadora sobre o Vaticano II
recebeu um formidável impulso”[21].
Apesar de que, a mentalidade anti-vaticano II já era bem evidente no pontificado
de João Paulo II. Para o Papa Bento XVI a hermenêutica da reforma prevaleceu
sobre a hermenêutica da descontinuidade. O atual Papa Emérito frisou em seu
discurso a Cúria Romana que, não existe um “espírito do concílio”. A ideia de
um “espírito do concílio” defende que as decisões e novidades do Concílio
Vaticano II não estão restritas ao texto, mas que, somente progredindo e indo
além dos textos é que se encontra o verdadeiro espírito do Concílio.
“Em
síntese: seria necessário seguir não os textos do concílio, mas o seu espírito.
Desse modo, obviamente, permanecem uma vasta margem para a pergunta sobre o
modo como, então, se define esse espírito e, por conseguinte, se concede espaço
a toda a inconstância”[22].
Na sequência, o papa emérito continua: o concílio não pode ser interpretado
como sendo uma nova constituição que aboliu a antiga. E sim, deve ser
interpretado como aquilo que de fato é: o vigésimo primeiro concilio da Igreja.
Gilles
Routhier destacou o papel de receptor no contexto da recepção teológica do
Vaticano II. Ele chamou a atenção para o conceito de Vaticano II, como um
Concílio de reforma e a importância de uma nova fase de “conciliaridade
regional e continental” para a recepção do concílio. Sublinhou a natureza do
Concílio Vaticano II, como um concílio que abriu as portas da Igreja para uma
nova era e a necessidade de uma Igreja pós-conciliar, com uma eclesiologia
prática que leve em conta a dimensão colegial e sinodal expressa nos documentos
do Vaticano II: “Provavelmente não precisamos hoje de um [Concílio Vaticano
III], mas precisamos permitir que cada nível da Igreja Católica e as culturas
em que vive dê nova vida à vida sinodal e dê novos meios de expressão à
conciliaridade da Igreja”[23].
Karl Rahner defende que o concílio é o começo de uma
renovação para o catolicismo. Segundo o cardeal Lehmann a interpretação do
Vaticano II vem de uma dinâmica teológica que é fruto do sopro do Espírito
Santo. É claro que nem toda mudança advém do Espírito, entretanto, existem
coisas que claramente foram inspiração do alto. Aceitar o concílio como um novo
começo para Igreja é aceitar que ele é um acontecimento do Espírito. Já aqueles
que reconhecem o concílio como um fim possuem uma visão pneumatológica negativa,
tanto do período do Vaticano II como do pós Vaticano II.
Análise
crítica a partir de Giuseppe Alberigo
Convém agora situar alguns contextos históricos do
Concílio Vaticano II. E para tal atividade, faremos uso da pesquisa de Giuseppe
Alberigo. Em seu livro História dos Concílios Ecumênicos Alberigo destaca que
após o dogma da Infalibilidade papal que foi decretado no Concílio Vaticano I;
muitos acreditaram que não haveria mais convocação de outros concílios; porque
o Papa teria alteridade para determinar todas as coisas sobre fé e moral.
“Se a cúpula eclesiástica romana e a escola teológica
simétrica a ela pareciam convocadas de que a exacerbação hierárquica e o
imobilismo doutrinário garantiam a integridade da fé e da Igreja, em muitas
áreas católicas e, sobretudo, na Europa centro-ocidental começou, nos anos
trinta, uma formação pró-renovação. Assim, especialmente no decênio que precede
o segundo conflito mundial, assiste-se à nucleação espontânea de “movimentos”,
que promovem novas experiências de vida cristã tanto em nível pastoral (busca de
uma liturgia participada, consciência da necessidade de uma re-evangelização),
espiritual (retorno à Bíblia, revival monástico),
teológico (volta às “fontes”, abordagem indutiva), quando eclesial (posição
ativa dos leigos, consciência ecumênica). Acumulava-se, por isso, uma soma de
experiências e de reflexões que geravam expectativas de renovação, às vezes
timidamente avaliadas – como no caso da exegese bíblica ou da liturgia –, às
vezes distorcidas, como para a reflexão eclesiológica, em vários casos não
correspondidas e até severamente reprimidas (ecumenismo, théologie nouvelle)”[24].
O anúncio da convocação do Vaticano II foi algo
totalmente inesperado por todos. Primeiro por causa do período da Guerra Fria,
que havia se instalado no mundo após duas grandes guerras mundiais. Segundo,
porque João XXIII era visto como um Papa de transição e não se esperava que ele
fizesse qualquer coisa que pudesse mudar drasticamente o rumo da Igreja.
Sabendo que não poderia perder tempo, devido a sua idade já avançada, no dia 17
de maio de 1959 João XXIII constitui a comissão preparatória do concílio. Essa
comissão deveria recolher as opiniões e sugestões de bispos, de universidades e
faculdades católicas e dos organismos da cúria. João XXIII queria que o
Concílio Vaticano II fosse algo novo na vida da Igreja, e não apenas a remada
do Concílio Vaticano I.
Em 11 de outubro de 1962 foi celebrada a solene
abertura do concílio. Entre os presentes estavam padres conciliares, peritos e
convidados. Em seu discurso o Papa destacou os motivos que o levaram a
convocação do Vaticano II. Um dos principais temas tratados no concílio foi a
reforma litúrgica e a aprovação da língua vernácula na liturgia. Isso
significou para muitos que, a Igreja estava realmente preocupada em fazer a
mensagem evangélica chegar a todos.
Segundo Giuseppe Alberigo o uso da língua vernácula na
missa significou um grande passo para o diálogo entre a Igreja e os pobres. Na
concepção de muitos estudiosos, tanto em países desenvolvidos quanto em países
de Terceiro Mundo, havia uma grande separação entre a Igreja e os pobres; para
este grupo a Igreja havia se identificado com o capitalismo.
A 14 de novembro deu-se início ao debate sobre as
“fontes da revelação”. O próprio título já causava discórdia entre os padres conciliares.
O pensamento protestante havia entrado de tal forma dentro da Igreja Católica
que, muitos dos padres conciliares não comungavam da ideia de posicionar a
Tradição no mesmo nível da Sagrada Escritura. Mais tarde reafirmou-se a
importância da relação entre a Bíblia e a tradição. Embora os peritos não
tenham dado conclusões sobre o assunto.
No dia 3 de junho de 1963, dia de Pentecostes, o Papa
João XXIII partiu deste mundo; e sua morte foi muito significante para a Igreja
e para o mundo. Antes de morrer o Papa havia escrito a encíclica Pacem in Terris, onde o Sumo Pontífice
dirigiu-se não só aos membros da Igreja, mas a todos os homens de boa vontade.
O Papa bom trouxe à tona temas como a caridade e a unidade, e foi bastante
carismático porque não se prendia as estruturas do Vaticano. Contudo, a
pergunta que mais marcou a morte de João XXIII foi: o que fará o seu sucessor?
Todos tinham consciência de que haviam muitos opositores ao concílio e, que se
obtivessem o apoio do novo Papa o concílio seria interrompido.
O conclave de 19-21 de junho elegeu o Cardeal Montini,
que assumiu o nome de Paulo VI. Montini fora membro da comissão preparatória do
concílio, e para responder a todos aqueles que estavam ansiosos por saber qual
seria a postura do novo Papa em relação ao Concílio Vaticano II, ele afirmou:
“Poderíamos nós abandonar um caminho tão magistralmente desenhado por João
XXIII, visando inclusive o futuro? Temos razões para acreditar que não”. “No
dia 27 de junho, o secretário de Estado anunciou que o Papa havia determinado
não só a continuação do concílio, mas fixado o dia 29 de setembro para a
retomada dos trabalhos, que ficara assim adiada só em duas semanas, que tinha
sido a duração da vacância da sede de Pedro”[25]. Assim que Paulo VI retomou os trabalhos, a 29 de
setembro de 1963, relembrou os quatro objetivos do concílio: a exposição da
teologia da Igreja, a sua renovação interior, a promoção da unidade dos
cristãos e o diálogo com o mundo.
O Concílio foi dividido em três grandes períodos;
durante o concílio houve a elaboração de 16 documentos, cerca de 2.200 (dois
mil e duzentos) bispos se reuniram em 4 sessões do Vaticano II. Entre os 16
documentos temos 4 constituições (Sacrosanctum Concilium, Lumen Gentium, Dei Verbum
e Gaudium et Spes), 9 decretos (Inter
Mirifica, Orientalium Ecclesiarum,
Unitatis Redintegratio, Christus Dominus, Perfectae Caritatis, Optatam
Totius, Apostolicam Actuositatem,
Ad Gentes e Presbyterorum Ordinis) e 3 declarações (Gravissimum Educationis, Nostra
Aetate e Dignitatis Humanae). A 8
de dezembro de 1965 celebrou-se solenemente o encerramento oficial do Concílio
Vaticano II no adro de São Pedro.
Conclusão
O Concílio Vaticano II foi um grande marco e um verdadeiro
divisor de águas dentro do catolicismo. A convocação do Concílio feita por João
XXIII tinha como intenção, abrir as portas da Igreja para um futuro ainda
desconhecido. João XXIII sentiu-se impulsionado a tomar essa atitude, porque
muitos acreditavam que o seu pontificado seria apenas um pontificado de
transição, que prepararia a Igreja para um novo Papa. Impelido pelo Espírito
Santo ele convocou essa solene reunião, para que a Igreja pudesse atualizar a
sua linguagem, e assim, estivesse pronta para dialogar com a modernidade.
João XXIII teve todo uma história de diálogo com
pessoas que possuíam pensamentos e até crenças diferentes das suas. Ele sabia
que todos eram seus irmãos em Cristo, e não se recusava a estender as mãos para
os necessitados, mesmo se fossem de outras religiões. Todo esse itinerário de
diálogo inter-religioso e ecumênico o tornou um Papa aberto ao diferente,
disposto a conversar, e sempre preocupado em realizar a vontade de Deus.
Com a morte de João XXIII e a eleição de Paulo VI, o
concílio passou por um grande dilema; pois havia a possibilidade de o concílio
ser interrompido pelo novo Papa. No entanto, esses rumores não se
concretizaram. Paulo VI assumiu o papado disposto a continuar a obra de seu
antecessor. E no encerramento do concílio, Paulo VI se dirigiu a todos os
homens independente de seus status sociais, idades ou gêneros. Demonstrando com
isso que, a Igreja é a Mãe de todos e está com as portas abertas para acolher a
todos. E assim, por meio desses dois homens, o Espírito Santo soprou mais uma
vez sobre a sua esposa a Igreja; dando-lhe novo vigor.
Referências
Bibliográficas
Alberigo, Giuseppe. História do Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.
Cons. Past. Gaudium
Et Spes
Discurso Inaugural de sua Santidade o Papa João XXIII
na abertura do CVII.
Faggioli, Massimo. Vaticano
II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013.
[1]
Aggiornamento é um termo italiano,
que significa "atualização".
[2]
Discurso Inaugural de sua Santidade o Papa João XXIII na abertura do CVII.
[3]
Ibid.
[4]
Ibid.
[5]
Cf. Faggioli, Massimo. Vaticano II: a
luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 21.
[6]
Ibid. p. 33.
[7]
Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta
pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 35.
[8]
Ibid. p. 36.
[9]
Ibid. p. 45.
[10]
Ibid. p. 46.
[11]
Ibid. p. 47.
[12]
Ibid. p. 52.
[13]
Ibid. p. 65.
[14]
Ibid. p. 84 – 85.
[15]
Cons. Past. Gaudium Et Spes n. 1.
[16]
Faggioli, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013,
p. 88.
[17]
Ibid. p. 89.
[18]
Ibid. p. 90.
[19]
Sacrosanctum Concilium
[20]
Alberigo, Giuseppe. História do Concílios
Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995 p. 151.
[21]
Ibid. p. 153.
[22]
Ibid. p. 159.
[23]
Cf. Ibid. p. 163.
[24]
Alberigo, Giuseppe. História do Concílios
Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995 p. 394.
[25] Ibid. p. 409.
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