A RELAÇÃO DO HOMEM COM O TRANSCENDENTE: QUE LUGAR TEM DEUS A PARTIR DA FILOSOFIA MODERNA
Introdução
A partir do século XVII ocorreu na história
da filosofia uma mudança de postura filosófica, principiando assim, o Período
Moderno. Desta forma, as disciplinas filosóficas passaram a ser pensadas de
forma diversa da postura precedente (Medieval). Neste sentido, a questão da
relação do homem com o transcendente foi pensada de um modo na filosofia
tradicional e de outro na filosofia moderna. Os referenciais epistemológicos,
além do contexto e objetivos são diversos e, por conseguinte, os resultados
também. Para entender esta problemática, tomemos um pensador de cada período
como seu representante, Tomás de Aquino e René Descartes, e analisemos a
sua concepção da relação do homem com o transcendente mediante a
reflexão sobre o conceito de inteligência espiritual de acordo com o
filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz.
Referencial epistemológico e método
A
Filosofia aristotélico-tomista é realista, ou seja, tem postura filosófica que
parte da coisa (do latim “res”) ou mundo real. Para tal filosofia, o
pressuposto básico é que há um mundo real do qual deve partir o pensamento. Neste
sentido, a controvérsia metafísica é mostrar como é a estrutura deste mundo
real.
Entretanto,
crenças sobre a natureza do homem e do mundo, diversas da realista, fizeram com
que viesse à tona o problema do conhecimento, de modo que a epistemologia se
tornou o problema principal que haveria de deter a atenção dos modernos. Desta
forma, o pensamento moderno desvencilhou-se da Idade Média e postulou uma nova
forma de ver o mundo.
A
filosofia moderna surge com espírito de ruptura com a tradição, tanto que René
Descartes (1596-1650), o fundador desta nova forma de pensar, afirma que “observando
com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os
homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil” (DESCARTES,
1999, p. 36), de modo que vai ordenar tudo segundo ele próprio através de seu
método.[1]
O filósofo francês, afirma que não podia encontrar a ciência que procurava
senão em si mesmo ou no livro do mundo. Isto é sinal de seu idealismo subjetivista, que toma o
pensamento como princípio, prova disto é que o cogito
é a primeira verdade alcançada e o fundamento sobre o qual todo o resto pode
ser construído.
O
idealismo subjetivo tem como ponto de partida o pensamento ou o ato de pensar
do sujeito. Trata-se de uma filosofia
centrada no sujeito e não mais no mundo real como algo que se impõe a ele; a
certeza do pensamento é que determina a verdade sobre as coisas, ou seja, o pensamento é fundamento do ser (Cf. LLANO, 2014, p. 109), com o que se inverte o realismo, que concebe
o ser como fundamento do conhecimento.
Para
a metafísica de Aristóteles e de Tomás de Aquino, porém, a verdade tem
fundamento no ser da coisa, de modo que ela se dá na operação com a qual a
inteligência capta o ser da coisa (esse
rei) tal como é. O ser, que é comum a todos os entes, é a raiz da verdade
da realidade, e a causa e o último termo de referência da verdade do
conhecimento. Daí a definição de verdade ser: “veritas est adequatio
intellectus ad rem”, verdade é a adequação do intelecto à coisa: a realidade se
impõe ao homem que para não cair no erro precisa aceitá-la como ela é.
Na
metafísica cartesiana, todavia, prevalece a consciência à disparate do ser de
que é dotada a coisa. Ela se identifica mais com a dimensão imanente do que com a dimensão transcendente tão importante para os
filósofos escolásticos.
A inteligência espiritual
São Tomás de Aquino reelabora segundo o aristotelismo
o conhecimento da inteligência espiritual dos seus antecessores. Ele compõe uma
antropologia ontológica cuja finalidade é a análise metafísica do real. O
conceito de “ato” (perfeição) é central, o qual corresponde à infinitude de
Deus, sua perfeição, que contrasta com a finitude e imperfeição do homem. Para o
Aquinate, inteligência espiritual consiste na correspondência da ordem
hierárquica da realidade em relação aos degraus do conhecimento.
Há graus de perfeição dos seres, uns são mais
perfeitos que os outros. Exemplo distof são os 3 tipos de almas: a vegetativa,
a sensitiva, e a intelectiva; a segunda é mais perfeita que a primeira e a
terceira mais que as outras duas. Ademais, as potências das almas são
“cumulativas”, isto é, a alma sensitiva abarca em si as potências da vegetativa
e a intelectiva abarca as da sensitiva e da vegetativa. O ato de conhecer
corresponde a estes graus de perfeição.
Deste modo, há também graus de conhecimento e o mais
elevado é aquele que chega a Deus. Assim, a inteligência espiritual é teocêntrica, ou seja, Deus é
o princípio e o fim do processo de conhecimento, de modo que acontece neste
processo, a participação do que é imperfeito no que é perfeito. Ademais, há nesta
lógica, a primazia do objeto sobre o sujeito, a abertura para Deus e, por
conseguinte, a ordenação do espírito finito ao infinito (Deus) e, por
fim, a descentração do homem em si mesmo e a adoção do infinito como centro. Em
resumo, o conceito tradicional de inteligência espiritual é: “a faculdade da
ascensão transtemporal por meio da qual é atingida, no tempo e pela mediação do
tempo, a eternidade do Ser absoluto” (VAZ,
2014, p. 280)
Na filosofia moderna, porém, a primazia é do sujeito
e não do objeto; a origem das coordenadas de estrutura não se encontra no
transcendente, mas na inteligência; ocorre uma imanentização do teológico no
ontológico; há a recentração do sujeito em si mesmo que leva à rearticular a
estrutura ontológica do homem; por fim, um fechar-se do horizonte da
transcendência por obra de Kant na “Critíca da razão pura”.
Nesta perspectiva, a filosofia de Descartes é a da
metafísica da subjetividade, a qual desarticula o modelo ontoteológico
tradicional, que era caracterizado pela descentralização de si que, por sua
vez, requeria uma abertura. Descartes substitui o horizonte universal do ser
pelo horizonte do pensável.
Assim, coloca-se a pergunta: será que na filosofia
moderna permanece o conceito de inteligência espiritual ou é absorvida na
imanência do sujeito? À esta pergunta, Henrique de Lima Vaz responde
negativamente:
O desaparecimento, na idade
cartesiana e pós-cartesiana que é a nossa, da “inteligência espiritual” como forma
mais elevada do conhecimento filosófico coloca-nos diante da situação que
evocamos na Introdução do nosso livro, qual seja a da dissolução da figura do
homem elaborada ao longo da história do pensamento clássico (VAZ, 2014, p. 288).
O conhecimento de Deus
Descartes,
nas sua Meditações metafísicas, pelo método da dúvida, busca chegar a
conhecimentos claros e distintos. O primeiro conhecimento verdadeiro a que ele
chega é o do que ele existe enquanto pensa.
O
cogito (pensamento) é para
Descartes o objeto da certeza que adquiriu, contudo, este método de conhecer a
verdade será aplicável ao que não corresponde à sua mente? “E mais: como
Descartes colocou o fundamento do saber na consciência, como será possível sair
dela e reafirmar o mundo externo?” (REALE, 1990, p. 371) São perguntas que o pai
da filosofia moderna terá de enfrentar.
Neste
sentido, na Terceira meditação metafísica , Descartes procurará provar a existência de
Deus como primeiro objeto extrínseco ao seu ato de pensar. No entanto, deve
provar que existe um Deus diferente daquele que supunha na primeira meditação:
um Deus não enganador, pois de modo contrário, não poderá afirmar nada, já que
este Deus teria o poder de enganá-lo. Para isso, vai analisar o cogito e o seu conteúdo, já que é aquilo
no que pode apoiar-se, numa viagem em si mesmo para ver os pensamentos que trás
em si e neles encontrar a ideia[2] de Deus.
Quando
se fala de ideia, segundo Descartes, há de se distinguir dois aspectos: o ato da ideia e o objeto da ideia (imanente). O primeiro diz respeito à forma da
ideia, a qual é a mesma para todas elas, pois é o pensamento a sua fonte (causa
da ideia). O segundo é o seu conteúdo objetivo, isto é, aquilo a que se dirige
o seu ato (efeito da ideia). O que diferencia uma ideia da outra é o objeto,
como quando se tira uma foto do pôr-do-sol e outra de uma casa, se têm duas
fotos com o mesmo grau de realidade, de modo que somente seus objetos (o pôr-do-sol
e a casa) são diversos.
Agora,
que o espírito é causa da realidade formal da ideia Descartes já afirmou,
todavia, será que pode ser também causa da realidade objetiva da ideia? Sendo
uma coisa pensante pode ser causa de todas as ideias que têm? Ele chega à
conclusão que pode ser causa de todas as ideias finitas e que possuem igual ou
menor realidade do que a sua substância. Entretanto, uma das suas ideias, não
pode ser produzida por ele, isto é, a ideia de Deus, como sendo “uma substância
infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e pela qual
eu mesmo, e todas as coisas que existem (se é verdade que há coisas que
existem) foram criadas e produzidas” (DESCARTES, 2015, p. 22), pois esta é
infinita e possui grau de realidade maior do que o dele. Portanto, a causa
dessas ideias é Deus e não o seu espírito.
A
ideia de “pedra”, por exemplo, é causada por ele, já que a causa (seu espírito)
possui mais realidade do que o efeito (a pedra). No entanto, a ideia de Deus[3], jamais poderia ser
produzida por ele, pois como produziria uma ideia que é tão mais real que ele?
Como um ser finito poderia conceber uma ideia infinita se não lhe adviesse de
fora e não de qualquer das criaturas, mas somente de Deus? Assim, se a
realidade objetiva supera a realidade formal necessariamente há algo
transcendente, ou seja, há um objeto transcendente que inspira a ideia, e este
é o próprio Deus.
Com efeito, Descartes até chega ao conhecimento de
Deus, entretanto, a ideia de Deus que ele tem difere profundamente daquela da
filosofia clássica. O fundamento gnosiológico de Deus é o pensamento, quer
dizer, Deus existe somente enquanto conhecido por ele. Deste modo, o problema de Deus se desenvolve no
âmbito da imanência do sujeito e, portanto, não há espaço para a ascensão (do
sensível para o inteligível) ao Infinito como termo do processo. Este ato de
ascensão é, todavia, o ato próprio da inteligência espiritual. Logo, não pode
haver inteligência espiritual na filosofia moderna.
Não obstante, a inspiração
original da concepção cartesiana de Deus e as opções metafísicas que orientam o
que se poderia denominar a vertente teológica do sistema de Descartes
demonstram, justamente, que a inversão por ele operada no ordo cognoscendi sobre o qual repousa a
tradição da “inteligência espiritual” provoca, de fato, uma ruptura profunda
dessa tradição. Ela instaura um novo paradigma metafísico que não propicia mais
à “inteligência espiritual” suas condições normais de exercício e que, entre
outras consequências, não deixa mais nenhum caminho aberto para a passagem da
filosofia à mística (VAZ, 2014, p. 283).
Considerações finais
No pensamento tradicional[4],
o homem é visto como ser que não é fim em si mesmo e que se realiza plenamente
à medida que, num processo de ascensão segundo os graus do conhecimento, se
aproxima do Ser mais perfeito, ou melhor, da Suma perfeição da qual participam
todas as perfeições do mundo: Deus. O homem é chamado, desta maneira, a uma
cada vez maior abertura ao transcendente. Isto significa um processo de
elevação da alma humana até Deus, o que aperfeiçoa o homem, o qual é, por
natureza, chamado à perfeição.
De modo bastante contrário, pensa a filosofia
moderna. Lançando o fundamento do conhecimento para o âmbito da mente, faz que
o homem se feche em si mesmo e não conheça o que de mais elevado ele pode
conhecer e esta, na verdade, naturalmente chamado a conhecer. O homem fica,
então, preso no seu “mundo” e não contempla a maior maravilha que existe. É
como aqueles homens que estavam presos na caverna, no mito de Platão, e não
contemplavam a realidade que traz consigo muitas belezas.
As consequências desta mudança drástica são, com
certeza, catástroficas. Elas reverberam no nosso mundo atual. Haja vista, as
inúmeras pessoas que vivem sem sentido, que entram em depressão e que até cometem suicídio. Uma vida sem Deus é uma vida que não
vale a pena ser vivida, pois contradiz a própria natureza.
Referências
- DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015
- DESCARTES,
René. Discurso do método. Os pensadores: Descartes. São Paulo: Editora
Nova Cultura Ltda, 1999
- KENNY, Anthony. Uma
Nova História da Filosofia Ocidental Volume III: O Despertar da Filosofia
Moderna. 2ª ed. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA, 2009
- LLANO, Alejandro. Gonosiologia Realista. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia
e Ciência “Raimundo Lulio” (Ramon Llull), 2014
- REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Volume II: Do
Humanismo a Kant. São Paulo: Ed. Paulus, 1990
- VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia
filosófica, volume I / Henrique C. de Lima Vaz. – 12. Ed. – São Paulo :
Ediçoes Loyola, 2014. – (Coleção filosofia)
[1] “Foi Descartes o primeiro filósofo
desde a Antiguidade a apresentar a si próprio como um inovador absoluto, como a
pessoa que teve o privilégio de pela primeira vez expor de fato a verdade sobre
o homem e seu universo” [KENNY, 2009, p. 61]
[2] Pensamento como imagem das coisas.
[3] Sobre a origem das ideias,
Descartes diz que são comumente classificadas como: a) Inatas: que nasceram com
a pessoa, b) Adventícias: são estranhas e lhe vem de fora e, c) Factícias:
feitas e inventadas pela pessoa. A ideia de Deus pertence ao primeiro grupo de
ideias.
[4] Diz respeito à abordagem que Limas
Vaz faz das “formas históricas da inteligência espiritual”, na qual ele expõe a
visão do neoplatonismo, do agostinianismo e de Tomás de Aquino, como expressão
do pensamento filosófico tradicional (C.f. VAZ, 2014, p. 252 – 271).
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